Biodiversidade, software livre e a liberdade do conhecimento

Autor: Sérgio Amadeu da Silveira.

O que a indústria de software proprietário tem em comum com a indústria de transgênicos? Ambas querem impedir a distribuição dos códigos que guardam os conhecimentos essenciais dos seus processos.

Uma série de conflitos essenciais para o futuro da nossa sociedade estão em plena ebulição no início deste século. Boa parte deles serão disputas sobre as fontes escassas de energia, o controle dos repositórios de água potável e o acesso ao conhecimento. São contenciosos na área ambiental e na área de propriedade intelectual. Em um primeiro momento, a relação entre estes conflitos não é aparente.

Intelectuais de diferentes orientações parecem estar forjando um consenso a respeito da emergência de uma sociedade informacional, o que implica em dizer que o capitalismo está superando sua fase industrial para alcançar um novo estágio. Mas qual seriam as principais características desta nova situação? Os bens informacionais, principalmente a informação processada, refletida e codificada, também denominada conhecimento, adquirem uma crescente importância econômica e tornam-se muitas vezes tão ou mais relevantes que matérias-primas essenciais para a produção capitalista.

O conhecimento, entendido como um conjunto de informações codificadas, tem uma importante característica muito diferente daquela que encontramos em bens materiais. O conhecimento, a informação e todos os bens intangíveis ou imateriais, não conhecem a escassez, ou seja, podem ser reproduzidos infinitamente sem nenhuma perda para o seu original. Uma música é um bem intangível e pode ser cantada por uma pessoa ou por um milhão de pessoas ao mesmo tempo. Um teorema matemático ou uma fórmula complexa pode ser repassada e usada ao mesmo tempo por dez, vinte ou milhares de pessoas. O custo de reprodução de um bem imaterial é, em geral, o custo de seu suporte e dos mecanismos usados para reproduzi-lo. O uso dos bens imateriais é não-rival, todos podem usá-lo sem nenhuma perda.

Com a expansão das redes informacionais nunca a humanidade esteve tão próxima de tamanha possibilidade em democratizar os benefícios e riquezas de um dado momento histórico, principalmente porque uma economia baseada em bens imateriais desconhece a escassez e o desgaste. Aldeias isoladas e comunidades tradicionais podem, não somente portar os produtos de sua cultura para a rede mundial de computadores, bem como acessar um conjunto de obras e conhecimentos de outras culturas. Contudo, exatamente devido as atuais possibilidades técnicas do compartilhamento do conhecimento e de seus desdobramentos redistributivos de renda e poder, que um forte movimento reacionário se apresenta na conjuntura mundial. Sua finalidade é bloquear a distribuição do conhecimento para controlar os fluxos de riqueza e mantê-la concentrada nos mesmos grupos que dominaram o capitalismo global.

Apesar das propaladas promessas, até o momento a chamada sociedade da informação não alterou a enorme concentração de riqueza típica da sociedade industrial. Somente uma corporação norte-americana de software, a Microsoft, faturou US$ 36,84 bilhões, no ano fiscal de 2004. Tal quantia é 4,78 vezes maior que a soma do faturamento de todas as empresas de software brasileiras (US$ 7,7 bilhões), 4,76 vezes maior que todo o mercado indiano (US$ 7,9 bilhões) e 4,49 vezes maior que o mercado chinês (US$ 8,2 bilhões).

Enquanto uma grande aliança da indústria de software proprietário, das mega-corporações de entretenimento, de fertilizantes e biotecnologia, se forma com o intuito de bloquear a disseminação do conhecimento, um poderoso movimento baseado no compartilhamento da tecnologia da informação ganha milhares de adeptos em todos os continentes e desafia os modelos tradicionais de propriedade intelectual. O movimento do software livre que se baseia no desenvolvimento aberto e colaborativo do código-fonte dos programas de computador já envolve mais de 1.264.770 desenvolvedores em 114.915 projetos de programação, registrados somente em um dos repositórios de compartilhamento. O software livre mais conhecido, o Linux, possui mais de 150 mil desenvolvedores espalhados pelo planeta. O software Apache, também livre, já está sendo utilizado em mais de 60% dos servidores de web do mundo.

Além disso, o movimento do software livre inspirou outros segmentos da cultura digital a apostar na colaboração e no compartilhamento do conhecimento. A Wikipedia, enciclopédia mantida por colaboradores, ultrapassou a gigantesca Enciclopédia Britânica em número de verbetes e de línguas em que é escrita. O movimento de colaboração cultural Creative Commons possui mais de um milhão de obras artísticas (filmes, fotos, livros, músicas, animações, etc) registradas em suas licenças que permitem o compartilhamento e o uso justo.

A idéia básica de que quanto mais o conhecimento é compartilhado, mais ele cresce, típica do movimento de software livre, choca-se não somente com os monopólios de software proprietário mas também com o oligopólio dos organismos geneticamente modificados. Mas o que a indústria de software proprietário tem em comum com a indústria de transgênicos?

Ambas querem impedir a distribuição dos códigos que guardam os conhecimentos essenciais dos seus processos. De um lado, esconde-se o código-fonte, texto que contém cada linha de rotina de um programa de computador. De outro, a partir da manipulação genética das plantas e do controle privado dos códigos das sementes alteradas, dominam e monopolizam o conhecimento das formas de reprodução da vida.

A biodiversidade em conjunto com as técnicas tradicionais de cultivo sempre foram a base da autonomia do agricultor, ou seja, o conhecimento sobre o modo de cultivar a terra e tratar das plantas era de domínio público, assim como, a biodiversidade permitia o livre acesso às sementes. Ao alterar a genética das plantas e se apropriar de tais modificações por meio das patentes, se bloqueia um conhecimento vital à humanidade e concentra-se ainda mais a riqueza nas mãos de um diminuto número de corporações ricas do Primerio Mundo.

As multinacionais dos transgênicos querem transformar o mercado agrícola em um mercado monopolizado a partir da redução do número de espécies de plantas naturais, para que os agricultores só possam adquirir sementes geneticamente modificadas de seus laboratórios. Ao retirar as plantas naturais do processo se retira também o conhecimento, até agora, de domínio público das formas de reprodução das espécies. Controla-se assim, a produção de alimentos, algodão, etc. Cada semente, tal como um software proprietário, terá uma licença de uso. Quem não pagar por ela estará praticando a denominada "pirataria", termo tão conhecido no mundo da informática.

O movimento por um país livre de transgênicos e o movimento pelo software livre devem se unir para o fortalecimento da luta pela liberdade do conhecimento, pela autonomia do homem, pela distribuição da riqueza socialmente produzida e pela biodiversidade.

Sérgio Amadeu da Silveira é doutor em Ciência Política pela USP. Professor de Teoria da Informação da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Diretor da Rede Livre de Compartilha-mento da Cultura Digital. Autor dos Livros Exclusão Digital: a miséria na era da informação e Software Livre: a luta pela liberdade do conhecimento.