Crônicas de um Celepariano em Paris

Autor: Pedro Luis Kantek Garcia Navarro - GAC - Ramal 381

Antes que alguém pergunte ("afinal você tirou licença pra estudar ou pra viajar ?"), deixe eu ir me explicando: minha dispensa está se aproximando do fim, e uma das pendências do curso era uma prova de suficiência em francês. Como minha intimidade com a língua de Racine e de Asterix era absolutamente nenhuma, lá me mandei de novo, para um mês de aulas da língua e da civilização francesa, em Paris.

Não há dúvida que esta merece ser chamada de cidade luz. Depois de conhecer Paris, qualquer outra cidade do mundo, conhecida ou por conhecer, vai ser mais ou menos como Santa Rita da Ladeira (com todo o respeito aos ladeirenses).

Bom, quando a gente está num lugar desconhecido e língua idem, precisa-se tomar certos cuidados para não dar vexame. Mas não deu outra: já comecei com a bola toda. Chegando no metrô, num domingo a tarde, com chuva, estação meio deserta, me posiciono com duas baitas malas na área de embarque e aguardo o trem. Este chega, todas as portas se abrem, sobe e desce gente, aquela correria. Aliás um detalhe: todas as portas exceto a que parou na minha frente. E eu fiquei com cara de tacho segurando as duas malas, até o trem assobiar e zarpar nos meus bigodes. Como minha paranóia ainda não é tão grande a ponto de achar que o trem estava me perseguindo, disfarçadamente dei uns passos de ré — pra ninguém perceber — e fiquei de soslaio, esperando para ver o que acontecia no próximo trem. Este chegou e o mistério se desfez: as portas do metrô em Paris têm trinco: o cidadão tem que abrir o trinco para a porta se abrir. Ahhh! Desfeito o mistério, não havia nenhuma perseguição, era só ignorância mesmo. Esperei o próximo trem, abri o trinco, e voilá, embarafustei-me nos subterrâneos da cidade luz.

Cheguei no hotel — aliás uma espelunca — tinha uma estrela, mas devia ter só 0,3. Instalei-me no quarto, e pronto: chegou a hora de ligar o rádio e ouvir a doce língua franca. Ligo o aparelho e tomo um susto: ouve-se um estridente "seeeeegura o tranco moçada. Bate fooooorte o tambor!" Céus, mon Dieu, será que o rádio não sabe que estamos em Paris ? Ouço mais um pouco para ver se estava pegando uma rádio brasileira de sambão num aparelho vagabundo de 30 dólares, quando o mistério se desfaz. Diz o locutor "c’est la trés exotique musique brasilienne".

Fiquei numa instituição para estrangeiros muito legal. O sistema escolar francês é notável. Lá não tem esse negócio de politicamente correto. O professor manda e os alunos obedecem. Só para vocês terem uma idéia, é uma terrível falta de educação olhar para o relógio, quando a aula se aproxima do final e a barriga ronca de fome. É mais falta de educação ainda, fechar os cadernos ou arrastar as cadeiras em idêntica situação. As madames e mademoiselles eram fogo. Não tinha conversa não. Mas que o estudo é muito mais produtivo, isso lá é. Nem pensar em deixar de fazer as lições de casa, era confusão na certa no dia seguinte. As aulas iam de 9 a 13 e de 14 a 15. É tanto verbo, pronome, artigo, adjetivo em francês que chega uma hora que você começa até a sonhar em francês.

Mas, o mais divertido são as confusões da linguagem: Um dia — logo no começo — chego atrasado na aula, por causa do fuso horário. Agora, no verão, quando lá são 9 horas, aqui são 4 da madrugada. Depois de levar um olhar congelante da Mme. Jouelle, nossa professora (e que professora), ela vira para mim e pergunta, assim de bate-pronto: Pedro, vous avez un cou ? (Pedro, vuzavê ãn cu?). Na hora só me ocorreu pensar - de ato reflexo - em tenho sim, mas é só meu. Eu sabia que vous avez un significa "você tem um...", mas cou, eu não fazia a mais vaga idéia do que fosse. E eu preocupado com a quantidade enorme de palavras iguais no francês e no português. Fiz tamanha cara de espanto que a gentil Mme. me explicou: Estavam estudando as partes do corpo, e já haviam acabado de estudar a cabeça quando eu entrei. Estavam descendo e "cou" significa pescoço. Ufa!! Que alívio. Mais calmo, respondi: Oui, madame. J’ai un cou (Sim, senhora, eu tenho um pescoço).

Chega o primeiro fim de semana e me mando para Genebra na Suíça. O trem é um espetáculo, viaja a 400 Km por hora, parece um avião em terra. Chego em Genebra e vou visitar o parque do Lac Leman. Coisas de suíço. A cada 100 metros, tem um tipo de orelhão da prefeitura com embalagens de plástico para os cidadãos recolherem o cocô que seus animais produzem no parque. Uma amiga me contou que a coleta de lixo na Suíça custa 7,00 US$ por pacote de lixo que você deixa para o caminhão pegar. Eu, hem? O país é maravilhoso, limpo até não poder mais. Levo meu almoço e escrupulosamente embrulho todo o lixo para jogar num lixão próximo. Tendo feito minha boa ação, fumo um cigarro, e quando este termina, não tem lixão por perto. E agora ? Dou uma de João-sem-braço e deixo cair a bituca no meio da grama, assim como se tivesse sido um acidente. Um cidadão suíço que passava ao meu lado me olha como se eu tivesse ofendido a mãe dele. Assim já é demais: tá certo que limpeza é bom, mas como já dizia o Asterix, um pouco de sujeira até que ajuda a passar a vida.

Na volta, estou sozinho no vagão imenso com um bando de espanhóis. Aliás, um parêntese: sou de família espanhola, meus 7 irmãos nasceram lá, só eu sou brasileiro. Esfreguei (mentalmente) as mãos de contente: ia ter diversão. Eles não me decepcionaram. Entre tantos diálogos impagáveis, ouviu-se esse:

— Ehhh, nenita, querida, da me aquel paquete (A mãe pedindo toda carinhosa para a filhinha duns 6 anos, para ela pegar um pacote). E a menina pula que pula, brinca que brinca, nem aí com a mãe.

— Bueno, linda, coje me el paquete. E nada da guria atender à mãe.
Pavio de espanhol é mais curto que perninha de pulga. Sei disso por experiência própria. Era só aguardar que o espetáculo ia correr. Não deu outra. A mulher estourou bem rápido:

— Pues anda borrica, pedazo de bestia. ¿¡estas sorda ?, que te llevo a un médico. Me das o no me das el maldito paquete esse ?!

O assunto do momento na Europa é a vaca louca. Todo mundo apavorado com a doença misteriosa que não tem cura. Daí um burocrata qualquer do governo francês bolou um impressionante carimbo, com as letras VF (viande française = carne francesa) para aplicar sobre toda a carne de origem francesa. Agora a população ia poder consumi-la sossegadamente. Pois, o feitiço virou contra o feiticeiro. Assim que o carimbo começou a circular, as pessoas imaginaram que era um carimbo de aviso e VF passou a ser entendido como "vache folle" (vaca louca). Rapidamente as autoridades sanitárias precisaram achar um substituto para o raio do carimbo.

Próximo fim de semana, e Londres, aí vou eu. Depois de pagar uma fortuna por uma passagem de trem sob o Canal da Mancha (mais caro que o avião), e depois de 3 horas de viagem, cheguei. Ouvir o sotaque inglês é uma delícia, ainda que o inglês que se fala lá, não seja o inglês que aprendi. Não conseguia entender nada, mas tudo é festa. Exatamente no meio do canal, abre-se a porta do vagão e vem o fiscal da imigração inglesa, e com toda a gentileza e fleugma britânicas me pede: your passport please, mister. Entrego o documento e ele:

— O que o senhor vai fazer na Inglaterra ?

— Visitar Londres.

— Perfeito. E quantos dias o senhor pretende ficar ?

— Só hoje. Volto à tarde.

O inglês arregalou os olhos, ergueu uma (só uma) sobrancelha, fez cara de espanto e fulminou Only one day to visit London... ? Acho que ele ficou ofendido com a proposta de conhecer Londres em 6 horas. Mas carimbou e me devolveu o passaporte.

Fui almoçar num boteco em Trafalgar Square. Sempre que entrava num lugar de comer, eu primeiro perguntava qual era o esquema da casa. Uma gentil atendente me explicou bem devagar. Havia um buffet de saladas e eu podia escolher: Uma única visita custava 3 libras. Se eu quisesse ir mais de uma vez ao buffet, o preço era 6 libras. Bom, eu não como muito, e pensei com meus botões: esses ingleses são meio trouxas. Vou lá uma só vez e encho bastante o prato. The first choice, eu bradei cheio de razão e argúcia. Daí veio o prato para eu me servir: era um pires menor que pires de cafezinho. Não sei não, acho que fui eu que banquei o trouxa. Visitei Baker Street, como sherlockeano de carteirinha que sou, quase fui atropelado umas quantas vezes (lá os carros andam na contra-mão), passei na frente de Downing Street n. 10, a residência do primeiro ministro e ... fim de passeio, hora de voltar aos livros de francês.

No último fim de semana, o destino era Madrid. Como sou meio espanhol, posso falar à vontade desse encantador país. Está mais para terceiro mundo do que para Europa, como já se verá. A viagem de Paris até a fronteira num TGV train à la grand vitésse ( = trem a grande velocidade). Em Irun, na fronteira e já em solo espanhol, trocamos de trem e pegamos um tipo lesma que se arrastou até Madrid. Superlotado, com cabines minúsculas, nas quais viajavam 6 pessoas, foi uma festa. Na minha cabina viajavam 2 americanas (além de um velhinho espanhol que enxugou 3 garrafas de vinho, rascante, daquele bem vagabundo, em pouco mais de 2 horas). As americanas iam levemente enojadas com aquela - digamos - pequena promiscuidade. Mas, não se enganem, elas queriam aplicar o golpe do bilhete e viajar sem pagar. Já quase iam enrolando o moço dos bilhetes, um rapazote dos seus 18 anos (devia ser o seu primeiro emprego), quando este, já meio desesperado se saiu com essa Voy a llamar el jefe conductor. E eu só de butuca, sem perder palavra. Como se dizia na minha casa quando eu era pequeno, se iba a armar la gorda , isto é ia ter confusão. Bate boca pra cá, bate boca pra lá, e vem o "jefe". Preciso descrevê-lo. Um baixinho com pisar firme, bigodes panchovilescos, e um vozeirão de Pavarotti, chega exclamando: ¿Que pasa aqui ? Bem que as americanas tentaram enrolar o cidadão, mas ele não deu folga. Após dar 20 segundos para as explicações das duas, fulminou: Bueno. Ustedes o pagan, o se bajan del tren. Esto es España! Só faltou exclamar Y no la casa de la suegra. Quase foi aplaudido no trem.

Em Irun, me dei conta que não tinha um tostão em pesetas. (Nessa altura tinha dólares, francos e libras — nunca fiz tanta conta na vida), mas pesetas que é bom, nada. Comecei a procurar um quiosque 24 horas para pegar bufunfa (grana), e finalmente, achei um. Entrei, procurei e ... todas as instruções em basco. Parêntese: Irun é uma das principais cidades do País Basco, que é um enclave na Espanha e na França e que quer porque quer se separar. Quem não ouviu falar nos separatistas bascos do ETA ? Uma das maneiras mais sutis de lutar contra a assim chamada dominação da Espanha sobre o lugar é não usar o espanhol para nada. Fim do parêntese. Vai daí, que na cabina só tinha instruções em basco. Dito assim parece fácil, mas é um dos mais difíceis idiomas da face da terra. Por exemplo, o nome do país (país basco) em língua nativa é algo como Eurraski Euzkadi. Não teve jeito, tive que ir trocar dinheiro só em Madrid.

A cidade é meio feia, mas tem um astral ótimo. Chego às 9 horas da manhã e parecia que tinham soltado uma bomba. Não havia viva alma nas ruas. Pergunto no hotel o porque disso, e vem a resposta: Porque es pronto (é muito cedo). A primeira sessão de cinema em Madrid é as 17:30, e o movimento para jantar nos restaurantes, por exemplo, só começa depois das 23h.

Pego um táxi para ir na estação de La Moncloa, e dá-se um diálogo inesquecível. Pergunto eu:

—¿Se tiene que usar el cinturón de seguridad aqui ?
— Bueno, a eso nos obligan. Pero a mi no me gusta andar atado al auto. Y además, yo no soy maricón. Pero si usted quiere, puede atar se.

Tradução: É obrigatório usar o cinto de segurança aqui ? Bom, a isso nos obriga a polícia. Mas, eu não gosto de andar amarrado no carro. E, além disso eu não sou maricão. Mas se o senhor quiser...

— No, muchas gracias. A mi tanpoco me gusta andar atado (Não, obrigado, eu também não gosto de andar amarrado). Também, depois do que o cidadão disse, o negócio era se agarrar na porta e relaxar.

Chegou o dia de vir embora. Pego um táxi, todo entusiasmado em poder — finalmente — falar um pouco de francês, e no meio do papo, o motorista me pergunta para onde eu vou: Curitiba, Brasil, respondo. Ai! Que alegria, responde o fulano. Que alegria de falar um pouco de português. E desembesta a falar no nosso idioma. O diabo do homem era português, estava com saudades de casa... e lá se foi minha chance de treinar mais um pouco. Mais algumas (muitas) horas e estava desembarcando no Aeroporto Internacional de Curitiba. Diante de um imenso cartaz escrito CURITIBA, ouço uma voz feminina linda dizer: vôo seTE, cinco seTE... Nem precisava ler o cartaz. Com esse sotaque, só podia ser a minha terra. Pronto, estou em casa.