Crônicas de uma Celepariana na Europa

Autora: Maria Alexandra V. C. da Cunha

 


Para entender a história

  • Sou funcionária da Celepar desde 1985
  • Em 1989-90 obtive licença da empresa para cursar Mestrado
  • De janeiro a junho de 1990 fui, num programa de convênio do meu mestrado para Paris, onde cursei disciplinas na ESSEC - Ècole Superieur de Sciences Economiques et Comercialles
  • Sou portuguesa, tenho família em Lisboa e em Amsterdam

Depois dos episódios do Kantek em NY, seguem algumas aventuras de uma celepariana estudando na Europa. Esta primeira bem que poderia se chamar “A noite em que dormi com dois gatos”, mas para evitar mal-entendidos e também para honrar a coluna já aberta, segue o mesmo nome - “Crônicas de uma celepariana em...”

Estava há uns dez ou quinze dias em Paris e resolvi ir até Amsterdam. No primeiro bimestre, não tinha aula sexta-feira à tarde, o que foi um milagre (todos os meus colegas brasileiros tinham aulas segunda às oito, sexta até às cinco e um monte de buracos durante a semana) e assim podia esticar um pouco o fim-de-semana. Afinal, Amsterdam é só a seis horas de Paris. Dava para ir visitar a família e conhecer a cidade.

Era janeiro, mas em Paris não estava tão frio. A temperatura era como um Inverno em Curitiba, um pouco mais rigoroso. Variava durante o dia de zero a cinco graus.

Na sexta-feira assisti aula, almocei, arrumei uma bolsa com roupas, dois romances (um para a ida, outro para a volta), livros de estudo para o caso improvável de ser acometida de uma incontrolável vontade de estudar durante o meu passeio turístico, o endereço e o telefone dos tios, um sanduíche e só. Liguei para a tia avisando que estava indo, com horário previsto de chegada para às oito da noite.

Da minha casa até o metrô, uns dez minutos a pé. Apesar da temperatura não estar muito baixa, o vento incomodava. Soprando contra mim, chegava a me fazer diminuir o passo ou a andar de costas para evitar folhas, poeira, gravetos e outros objetos voadores não identificados.

De metrô, fui para a Gare du Nord. As estações de trem em Paris são quase todas bonitas, de ferro, num estilo que é (acho) do século 19 e quando a gente vai pegar um trem vale aproveitar e dar uma boa olhada. Entrei no meu vagão e fiquei olhando a estação, os passageiros que desembarcavam dos outros trens, os passageiros do meu trem e fui fazendo o tempo passar até a partida. O vento continuava soprando, levando chapéus, levantando saias, abrindo casacos, e até que me diverti com o espetáculo. Pontualmente às 14:00:00 (não é exagero, a pontualidade dos trens na Europa é de segundos, tanto na partida como na chegada), lá vou eu para Amsterdam, atravessando um pedaço da França, a Bélgica, e mais uma parte da Holanda.

À meia hora de Paris, o trem pára. Somos informados, em francês e em inglês, que o vento tinha derrubado algumas árvores nos trilhos e que estaríamos esperando cerca de uma hora pela remoção. Por mim, tudo bem, abri meu romance e comecei a ler. Duas horas depois, estava com fome e meu romance estava para lá da metade. Havia uma moça ao meu lado que se interessou pelo meu livro, o que serviu para começar a conversa.

Ela quis saber em que língua era o meu livro, ela não tinha reconhecido pelas palavras na capa. Falei que era português, e o papo já avançou para de que país e cidade eu vinha, o que fazia na França, enfim, essas coisas que a gente vive repetindo em viagem. Por sua vez, ela me contou que era bibliotecária em Amsterdam, que adorava viajar e ler, que falava seis línguas (holandês, alemão, francês, inglês, espanhol e italiano) e ainda lia o grego e russo, mas não falava. O tamanho da minha ignorância me deixou envergonhada. Com quinze dias de Paris eu já tinha percebido que o meu lindo francês, do qual eu antes me orgulhava, era uma bela porcaria. A primeira aula na ESSEC sobre MERISE, uma metodologia de desenvolvimento de sistemas francesa, tinha sido equivalente à mesma aula dada em aramaico, japonês, mandarim ou outra língua tão desconhecida quanto. Aquela moça falava seis línguas, e lia mais duas! E pior, no meio de todos esses idiomas o francês dela era sem dúvida muito melhor do que o meu. Mas se a gente não se entendia em francês, tentávamos o inglês e o espanhol, a mímica e a conversa ia avançando.

Mais uma hora e nada do trem andar, até que finalmente continuamos rumo a Amsterdam. Estávamos pertinho de Paris, e com três horas de atraso, e deram a opção aos passageiros que quisessem voltar à cidade de pegar um outro trem, mas resolvi continuar. Chegaria mais tarde mas de qualquer maneira meus tios iriam estar esperando.

Entramos na Bélgica sem problemas, mas o ventinho continuava forte. Dava para ver as árvores inclinadas, ninguém nas estradas e nem nas ruas quando cruzávamos alguma cidade.

Um pouco depois da fronteira da Bélgica, o trem pára de novo. Informações em francês e inglês avisam-nos que a passagem original está interrompida e que teremos de ir até Bruxelas, trocar de trem, e continuar. Bom, vou para Bruxelas.

Em Bruxelas, uma certa confusão. As informações, só em francês (que entendi pouco) avisam que temos quatro minutos para trocar de trem. É uma correria, todo o mundo querendo sair ao mesmo tempo, pegar suas malas e, literalmente, correndo por escadas e plataformas até o trem. Eu nem me preocupei, segui a multidão, e cheguei a tempo. Dentro do trem, encontrei de novo a bibliotecária (de quem infelizmente não guardei o nome, endereço, nada) e sentamos juntas.

O trem partiu quatro minutos depois do aviso, mas aparentemente todo o mundo embarcara. Cruzamos a fronteira da Holanda. Paramos. Voltamos para a Bélgica. Paramos. De novo a fronteira da Holanda. Paramos.

Estava com fome, cansada, e não sabia o que estava acontecendo. Esse trem só ia e voltava no mesmo lugar. Já tinha lido meus dois romances, devia ser umas dez ou onze horas da noite e começava a encarar a possibilidade de atacar os livros de estudo. De repente, o sistema de som começa a fazer um barulho, uma chiadeira, parecia estática. O estranho, é que todos escutavam atentamente, pelo que percebi que não era estática, eram informações em holandês (duvida? então vai escutar holandês no sistema de som de um trem e depois me conta...). Eu perguntei em francês:

- O que se passa ?

Recebi um belo - Schhhh! de resposta.

Tentei em inglês:

- O que está acontecendo?, mas a resposta foi a mesma:

- Schhhhh !

A estática falava, e as pessoas faziam:

- Ohhhh!

A estática falava mais um pouco e as pessoas faziam:

- Ohhhhhhh! (mais prolongado...)

E a estática falava, e agora diziam:

- Ohhhh, no, ohhhh!

Eu não entendia nada, olhava para a frente, para trás, para fora, ninguém me contava o que estava acontecendo. De vez em quando a estática parava, e a bibliotecária começava a me contar o que se passava, e de novo recomeçava o barulho no sistema de som e alguém fazia:

- Schhhh!

Finalmente, o trem volta a andar e começaram as explicações. Um pouco em francês, inglês, espanhol e muito em mímica, entendi o que estava acontecendo. Os ventos na Holanda tinham sido muito fortes, grande parte do país estava sem energia, muitos desabrigados, algumas mortes. As estradas fechadas, as equipes de resgate em ação e o vento não parava. Havia notícias de que cabos de energia tinham caído em cima dos trilhos e que talvez não fosse possível passar, mas que, de qualquer maneira, iríamos tentar continuar.

O trem andou uma hora dentro da Holanda (talvez menos) e voltou para a fronteira. Paramos numa estação chamada Roseentaal (ou Roseental, ou algo parecido), mandaram todo o mundo descer com as bagagens e quando todos estávamos na plataforma, o trem foi embora.

Alguns detalhes merecem ser sublinhados. Eu estava na Holanda (que não é célebre pelo seu clima tropical), em janeiro (no auge no Inverno), às duas da manhã, sem energia, com todo o mundo falando holandês e não querendo entender qualquer outra língua e, pior de tudo, a estação onde estávamos (era uma cidade pequena) não era fechada, não tinha paredes, só cobertura. Claro, tinha me perdido da moça holandesa.

O vento soprava furiosamente e o meu sobretudo de lã, o mais grosso que eu tinha achado no Brasil, me protegia tanto quanto um biquíni numa manhã de geada em Curitiba. Eu já não esfregava as orelhas, com medo que caíssem. A agüinha no meu nariz tinha congelado, e ficar com os olhos abertos doía. Ainda dei uns pulinhos, imaginando que podia me esquentar, mas depois que deixei de sentir os pés desisti. O vento entrava pela barriga, atravessava o estômago, saía pelas costas e ia todo contente atravessar outro. Como tinha muita gente na plataforma, eu tentava ficar lá no meio do povo, mas todo o mundo tinha a mesma idéia, quando eu finalmente conseguia chegar no meio começava a voltar para as bordas.

Teria sido pior se a minha nova amiga holandesa não tivesse me achado. Ela estava me procurando porque sabia que recém-chegada do Brasil eu não deveria estar protegida para o frio. E pasme, quando me encontrou, me deu o seu gorro, as luvas de couro (com pêlo por dentro), um cachecol, e queria trocar de casaco comigo, porque o dela era mais quente. O casaco não aceitei, mas o resto, fiquei com tudo, o que melhorou a minha situação. Devemos ter ficado ali talvez uns quarenta minutos e chegaram uns ônibus. Eu perguntava para onde íamos e me respondiam “denragen,” como eu não entendia diziam:

- Ai, Ai

Ai, ai, ai, digo eu, pensava, onde é que eu estou indo?

Graças a Deus dentro do ônibus tinha ar condicionado, e entendi que íamos para outra estação de trem. Devolvi todos os pertences à dona e agradeci com ênfase, como se ela tivesse me salvo a vida (depois, parece exagero, mas durante, eu realmente achei que ia morrer de frio).

Peguei uma janela e a paisagem não era das melhores, carros virados nas estradas, casas destelhadas, árvores de tronco grosso quebradas, algumas arrancadas do chão. Como a Holanda é muito plana, alguns viadutos têm proteção para o vento (já me disseram que são protetores anti-ruído, mas não sei ao certo) e aquelas placas tinham sido arrancadas, algumas pendiam ainda do suporte, outras estavam na estrada.

E tudo sem energia, a única luz que havia era a dos faróis dos ônibus.

Chegamos numa cidade grande, uns vinte minutos ou meia-hora depois. O ônibus parou na frente de um edifício enorme, todos descemos, e ele foi embora. Depois de tudo, aquele maldito ônibus foi embora! Pelo menos lá dentro tinha ar condicionado e agora estávamos no frio outra vez. O edifício, que era a estação de trem, estava fechado, todo apagado e trancado a sete chaves. Bem que o pessoal bateu e tentou abrir. Não fiquei parada ali muito tempo. A moça holandesa disse que ia tentar dormir na casa de uma bibliotecária amiga dela, se eu topava ir com ela. Talvez não conseguíssemos, mas era uma tentativa. O que você acha, eu topei ir dormir na casa de uma desconhecida? Claro que sim, imediatamente.

Os telefones não funcionavam, fomos para lá de táxi. O motorista disse não saber porque a estação de trem estava fechada, normalmente ficaria aberta a noite inteira. E nos deu notícias em inglês da tragédia, muitos desabrigados, calamidade pública, mas os diques agüentando. Também, só me faltava essa, os diques rebentarem no dia que vou para a Holanda!

Não me lembro mais que horas eram, alguma coisa como quatro ou cinco da manhã, e graças a Deus a amiga da recém-amiga nos recebeu. O apartamento era pequeno, no quarto dela tinha mais uma cama e me perguntaram se eu não me importava de dormir no sofá. Claro que não. O único problema, disse ela, eram os gatos. Que gatos? Vi os gatos. Não sei que raça eram os bichanos, talvez gatos persas. Mas uma boa maneira de os descrever é pedir para você imaginar uma bola de pelo. Enorme. Pensou? Muito bem, aplique duas orelhas, quatro conjuntos de unhas (não dava para ver as patas de tanto pêlo), dois olhos brilhantes de gato, e um andar majestoso. Fica esquisito pensar numa bola de pêlo com andar majestoso mas era assim que eles eram. Os gatos dormiam habitualmente no sofá que eu iria ocupar, dizia a dona, e talvez me incomodassem de noite, e além de tudo estavam trocando o pêlo.

- No problem, I love cats. (sic)

Todo o mundo deitou. Ainda não tinha energia, estava tudo completamente escuro e eu senti os gatos virem se deitar comigo. Um se aninhou nos meus pés, e outro deitou-se entre as minhas costas e o encosto do sofá. Não foi uma boa sensação sentir um gato se enroscando nas minhas costas. Se ainda fosse um gato conhecido, mas um desconhecido... Depois da segunda vez de os ter posto para fora do sofá e eles terem voltado, cansada, escutando o vento uivando lá fora, pensei que até que não era tão ruim assim, e apesar de jamais ter gostado de gatos, adormeci e descansei como se estivesse na minha cama. Se os gatos queriam dormir comigo, que dormissem, mesmo porque a pessoa fora de lugar era eu, não eles.

Fui a primeira a acordar no dia seguinte, com um gato passeando em cima de mim. Quando abri os olhos, pensei

- Que lindo, nevou!

Ops! meio segundo de bobeira, nevou, mas nevou como, se estou dentro de casa? Pêlos, pêlos de gato branco, por tudo. Não eram alguns fiapos pingados, eram tufos de pêlo por todos os lados, que deixavam tudo branco, como se neve fosse. O sofá, eu, a poltrona e a mesinha ao lado do sofá, estávamos completamente cobertos. Até procurei os gatos pois imaginei que estavam pelados, com tanto pêlo que tinha naquele canto da sala. A roupa que tinha deixado na poltrona ao lado, também estava branquinha, minha sacola, os cobertores, o sofá. Fui ao banheiro e quando me olhei no espelho o meu cabelo escuro estava meio cinza, esbranquiçado, cheio de quê? Pêlos de gato.

Tomei banho e meu cabelo voltou a ser preto. Quando saí do banheiro as moças já tinham se levantado, e me ajudaram a escovar as roupas e a mochila. Já tinha energia e os telefones funcionavam. Liguei para a minha tia, que coitada estava apavorada com o que poderia ter me acontecido, mas eu garanti que estava tudo bem e que estava indo para Amsterdam.

A bibliotecária, a primeira, ainda teve a gentileza de me levar até a estação de Tram (deve ser mais ou menos esse o nome, é um meio de transporte urbano cuja descrição fica entre a de um bonde e a de um trem).

Naquele dia, ninguém pagava meio de transporte. Quando cheguei na estação ferroviária, descobri porque estava fechada de noite, mais de duas mil pessoas desabrigadas haviam sido levadas para lá, e quando o edifício lotou a polícia fechou as portas. Também descobri qual era a cidade em que estava, Den Hagen, em holandês (eu escutava "denragen"), Haye em francês (lê-se "aie", o ai, ai, da noite anterior), ou Haia em bom português.

Durante a viagem Haia-Amsterdam, fiquei impressionada com o povo holandês. Pareciam formigas, por todos os lados, consertando tudo. Estavam em cima dos telhados, nas ruas, nas igrejas, nas casas, varrendo calçadas, lavando vidros, removendo carros batidos, limpando e erguendo tudo. Cheguei a Amsterdam sábado à tarde, quase vinte e quatro horas depois do previsto. No outro dia, domingo, não dava para imaginar que a Holanda tinha passado pela devastação que eu tinha visto. Claro, algumas coisas demoraram mais para ser consertadas, como as estufas de flores que são de vidro e que haviam sido todas quebradas, mas em geral, tudo estava funcionando.

Segunda-feira, estava de volta às aulas. No retorno, ainda tive um pequeno contratempo. Os trens na Bélgica tinham entrado em greve e tive (eu e todos os passageiros) de esperar três horas até acharem um condutor francês ou holandês. Mas depois de toda esta longa história, o que é uma greve e três horas de atraso?


Dicas de viagem

Antes de viajar, leia o boletim meteorológico.

Leve livros em viagem. Eles servem para entabular conversa, e também são uma bela desculpa para sair dela se o interlocutor for um chato.

Em caso de perigo, procure uma bibliotecária.

Se a situação piorar ache outra bibliotecária, e de preferência amiga da primeira.

Bibliotecárias são o melhor amigo do estudante