Crônicas de uma Celepariana na Europa (3a. Parte)


Autora: Maria Alexandra V. C. da Cunha

Este episódio poderia ser chamado "O mala sem alça", ou melhor "O baú sem alça", mas continuo fiel à tradição inaugurada pelo Kantek, aqui está a 3a. parte das crônicas de uma celepariana na Europa.

Para entender a história
Sou funcionária da Celepar desde 1985.
Em 1989-90 obtive licença da empresa para cursar Mestrado.

De janeiro a junho de 1990 fui num programa de convênio do meu mestrado para Paris, onde cursei disciplinas na ESSEC - ÉCOLE SUPERIEUR DE SCIENCES ECONOMIQUES ET COMERCIALES.

Sou portuguesa, tenho família em Lisboa e em Amsterdam.

Na ESSEC, rapidamente os estrangeiros se reuniram num grupo animado. Fazíamos passeios por Paris, às vezes para outros lugares. Nas disciplinas, também nos reuníamos para formar grupos de trabalho, era natural, tínhamos em comum o fato de estarmos sozinhos, todos com mais ou menos saudades de casa, num país estranho. Mas nesse grupo de estrangeiros havia um chato. Perdão, não era um chato qualquer - era "o" chato. Para mim era triste, por que além de ser brasileiro, o infeliz era de Curitiba, olha a propaganda de nossa cidade. Ele era o "desmancha-rodinhas", um sujeito tão inconveniente, que teve gente desistindo de disciplina só para não ter que ficar num grupo de trabalho com ele. Consegue imaginar um sujeito que recebe um grupo religioso na porta, não tem interesse, mas avisa o horário que a colega de apartamento vai estar em casa, marca visita, e ainda pede intérprete em português para ela entender melhor? Ele fez isso, e a moça queria estrangulá-lo.

Um dia na hora do almoço, chego no grupo de estrangeiros e falo:
- Reservei lugar no trem para Genebra no Domingo, alguém quer ir junto?
Já estava habituada a viajar sozinha, mas sempre é mais divertido com mais gente.

Se a gente pudesse dar marcha-à-ré no tempo, eu teria eliminado os 30s imediatamente anteriores ao momento em que reconheci a voz que me respondeu: era a voz do chato.
- Eu vou, nunca me convidam para ir, mas desta vez eu vou.

Claro que bastou para todo o mundo desistir de passear em Genebra. Pensei em simular uma indisposição, gripe, me atirar no chão com um ataque ou simplesmente falar na cara que não estava a fim de tê-lo como companhia. Mas fiquei com pena. O sujeito era piada de todo o mundo, ninguém ficava por perto. Ele era mais solitário que qualquer um de nós, e olha que a gente se sente só noutro país, mais do que dá para imaginar. Coitado. Genebra é a três horas e meia de Paris de TGV (o trem rápido francês), dá para ir e voltar no mesmo dia. Achei que um dia, apenas 14 horas, talvez não fosse tão ruim assim. Santa ilusão.

No domingo de manhã, antes de chegar à estação, já estava mortalmente arrependida de não ter desistido da viagem. Ele tinha trazido como lanche 1,5 l de iogurte, conservas para fazer sanduíches (em latas), pão, frutas e mais coisas, numa sacola de plástico de supermercado, que não agüentou o peso. Colocou uns cinco Kg na minha mochila e não fez nenhum movimento para carregá-la. Ainda andei um tempão carregando aquele peso, mas depois dei um toque. Eu tinha preparado o meu piquenique em casa, já tinha feito os sanduíches com pão de forma e embrulhado em papel alumínio, tudo caprichado com a preocupação de não ficar pesado, afinal iria andar o dia inteiro. Já que a sacola dele tinha estourado, ele que levasse meu lanche, que era bem mais leve. Depois de escutar um "poxa, não sabia que ainda havia mulheres que exigem cavalhei-rismo", tive um prenúncio do que seria o meu dia...

Quem me conhece, sabe que falo pelos cotovelos. Pois era impossível falar qualquer coisa, tive que escutá-lo discorrer sobre franchising, o tema da sua dissertação, até a estação de metrô. Dentro do metrô, até a estação de trem, o assunto foi a ótica do franchising na França, nos EUA e no Brasil, e esperando o TGV chegar foi o paradigma italiano de franchising.

Graças a Deus ele tinha menos de 26 anos, e por morar fora da Europa tinha direito a passe de trem de segunda classe, muito mais barato. Como eu tinha mais de 26 anos, só podia ter passe de primeira classe, ainda assim mais barato que as tarifas normais. Ele tentou me convencer a ir de segunda com ele (passageiros de primeira classe podem optar por assentos na segunda, mas o contrário não é permitido), para que continuássemos o papo sobre franchising, mas declinei o amável convite. Foram as melhores três horas do passeio.

No meu vagão, só havia três passageiros. Eu, e um casal. Num lugar vazio, com apenas três pessoas, é impossível deixar de escutar a conversa dos outros, a não ser que se fale muito baixo, o que não era o caso. Quando vi que eram brasileiros, começamos a conversar. Eles tinham chegado a Paris na véspera e traziam notícias frescas do Brasil. O plano Collor tinha acontecido havia pouco tempo, feriado bancário, o congelamento, novos ministros, novos ministérios, e lá na França não conseguíamos obter notícias. Os jornais brasileiros sumiam, ninguém conseguia comprá-los, na embaixada mal chegavam eram roubados (muito forte, digamos que desapareciam), o congestionamento de ligações impedia que falássemos com a família e as notícias do Brasil na televisão francesa eram mais resumidas do que são as notícias francesas na televisão brasileira.

O casal me contou e explicou tudo. O plano, a nova moeda, o congelamento. Contaram tudo o que lembravam e me emprestaram os jornais que estavam levando para a sobrinha em Genebra. Foram muito simpáticos.

No meio do caminho tive fome, mas minha mochila tinha ficado com o Mr. Franchising, e não me animei a enfrentálo, nem para pegar um sanduíche e sumir de novo.

Servi de tradutora para o casal na alfândega suíça, super-rigorosa (aquela altura já falava francês sem problemas) e quando cheguei em Genebra me despedi deles (me mandaram um cartão quando voltaram ao Rio de Janeiro).

O "mala" estava me esperando na saída, o que não me deu oportunidade de escapar. Sugeri irmos em pri-meiro lugar ver o lago, a gente podia até almoçar nalgum jardim em volta, apreciando a vista do enorme repuxo.

- Tudo bem, mas já aviso que não gosto de andar!

E o que é que o sujeito tinha vindo fazer em um passeio de um dia na Suíça? Andar de táxi?

Caminhei em volta do lago, lindo, mas infelizmente a trilha sonora era sobre os cuidados que devem ter franqueados e franqueadores, principalmente no Brasil. Nenhuma das minhas tentativas de encerrar aquele assunto tiveram sucesso, até que desisti.

Quando sentei para almoçar, ele me perguntou alguma coisa extremamente relevante no contexto, do tipo qual seria a franquia mais lucrativa, Benetton ou McDonald’s. Não tive uma síncope com a pergunta, porque entretanto abri a mochila e toda a minha capacidade de "subir nas tamancas" foi desviada para o que estava vendo.

As latarias dele tinham esmagado meus sanduíches. O litro e meio de iogurte tinha se derramado e empapado os sanduíches esmagados, a mochila, meu guia de Genebra, tudo o que estava lá dentro. As frutas também tinham sido esmagadas, então o molho era de iogurte de frutas, em alguns lugares, de iogurte natural em outros.

Ah, e mais, ele tinha tomado meus refrigerantes porque tinha tido sede e iogurte não mata a sede, mas eu não me incomodava, né, afinal o que são dois refrigerantes?

Achei que ia matálo, a mochila era novinha em folha, a única compra que fiz nas Galerias Lafayette. O acontecido foi demais até para a cara de pau dele.

- Eu dou um jeito, pode deixar, eu dou um jeito.

Pegou naquilo tudo lambuzado, enfileirou no murinho de uma fonte e começou a lavar peça por peça, latas, mochila, um conjunto de faca e garfo de viagens que era um brinde da Eventtur (da Cristina), o guia...

Se estivéssemos na Praça Osório de Curitiba, onde as crianças costu-mam tomar banho no verão, talvez não tivesse tido problema. Na Suíça, fontes não são pias de cozinha, são apenas para apreciação visual, e um policial rapidamente tratou de lembrá-lo dessa diferença cultural.

Sentada num banco, um pouco longe, me diverti imensamente. O policial gesticulava, esbravejava, e o outro suava, e fazia que sim com a cabeça. Me fazia sinal para ir lá, e eu dava tchau, sorrindo angelicamente e torcendo para que o levassem preso.

O crime não era para tanto, foi aplicada uma multa. Foi o desespero em pessoa, mas pagou a multa, fazer o quê (além de chato, era pão-duro como ninguém).

Vou resumir o resto do dia. Eu quis ir visitar a catedral protestante, um dos berços da reforma e palco das pregações de Calvino. Tive que o mandar calar, porque como não era a religião dele achou natural conversar durante a cerimônia (franchising...). Na rua dos bancos, me perguntou por que seria que ninguém tinha pensado em abrir franquias de bancos suíços, instituições tão respeitadas. No caminho para o museu da Cruz Vermelha, (um museu dedicado a fazer a humanidade não esquecer os horrores das guerras) o assunto foi, adivinhem o quê ? Franchising.

Na entrada do museu, tive que pagar a entrada dele, não tinha mais dinheiro. Falei que estava a fim de ficar sozinha. Eu iria para um lado, ele que fosse para outro, e não admiti réplica. Fazendo um parêntesis, recomendo para quem for a Genebra que visite este museu. As formas como os temas são mostrados é complemente diferente do que conhecemos, há um grande uso de tecnologia, cada um é de um jeito diferente.

Quanto a mim, não tive a sorte de poder vê-lo em paz, porque fiz o percurso sugerido no guia com um grude a cinco passos de distância (para ele cinco passos já configurava "sozinha"). Os horrores das guerras deram-me idéias de torturas apropriadas à chatice do rapaz, mas até para ele eram requintes de crueldade não implementáveis. Peguei o ônibus para ir até a estação de trem com um sujeito falando lá longe sobre franchising (quem disse que a gente não consegue fechar os ouvidos?). Também tive que pagar a passagem de ônibus, ele não tinha mais dinheiro, só que na estação de trem ele achou dinheiro para comprar cartões postais. Comprou poucos, porque antes fiz com que me pagasse o museu e o ônibus, o folgado!

Até Paris, mais três horas e meia sem o chato, bendita diferença entre primeira e segunda classes. Chegando à cidade, fugi dele, não precisei me esconder porque o perdi de vista, mas se precisasse tê-lo-ia feito.

O saldo da viagem até que foi positivo. Consegui recuperar minha mochila depois de quinze lavagens para tirar o cheiro de iogurte podre. Nunca, nunca mais fiz concessões a viajar com quem não estou a fim.

Dois dias depois da viagem me contaram que ele andava dizendo que tinha adorado o passeio, que tinha sido ótimo. Eu era o motivo de piada de todo o mundo. É que ele complementava acrescentando que eu começara a me interessar por ele.

Pode?

Dicas de viagem
Antes só que mal acompanhado, não faça concessões.
Você pode adorar qualquer assunto, por exemplo informática, mas isso pode ser zero para o seu companheiro de viagem.