Entrei de Gaiato num Navio...

Autor: Pedro Luis Kantek Garcia Navarro- GAC


Eis a história de um seqüestro vista do lado de dentro. O dia: 15 de março, uma quarta-feira; o local: edifício Castello Branco; as vítimas: os funcionários públicos de diversas secretarias e uns perus-de-fora, como este que vos escreve. Falarei apenas dos funcionários da SEPL e da Secretaria de Previdência, que é com quem convivi o drama e porque até agora ninguém deles falou. Até agora jornais, rádios e TVs só falaram da SEAD. É SEAD pra cá, SEAD pra lá, e de nós ninguém fala!

Tudo começou com uma reunião marcada com bastante antecedência para as 15h00 do fatídico dia no Núcleo de Informática da SEPL. Minha cara metade, funcionária da Prefeitura de Curitiba, também tinha que ir lá buscar um relatório e assim combinamos aliar trabalho e prazer. Fomos andando ciclovia afora desde a Lisymaco Ferreira da Costa até o malsinado edifício. Lá chegando já estava armado o circo. Apitos e gritos, aquela confusão tradicional em movimentos grevistas.

Depois, trocando impressões, um disse para o outro que se sozinho estivesse não seria louco de entrar na arapuca, mas juntos é diferente: quem ia dar parte de medroso? Além do mais, a bronca era com a SEAD, o Planejamento não tinha nada a ver, pensamos. Assim é que, de maneira corajuda, com bravura e picardia, adentramos a goela do leão. Os corredores ainda estavam desimpedidos e as feições das pessoas amenas. Temer o que?

A reunião começou mas não terminou: fomos interrompidos pelos gritos, arrufos e sobretudo pela eletricidade no ar. As portas acabavam de ser lacradas e logo depois empapeladas, para impedir a visão. As reações foram da galhofa, passando pela preocupação até as raias da fúria. Um alto funcionário da SEPL só conseguia pensar nos cigarros que pelo fim estavam e que a muito mais não durariam, ainda mais naquela taxa de consumo voraz. Cada cigarro era supervalorizado a cada quarto de hora, no câmbio negro que se instalou por lá instantaneamente.

Outros tinham aula, inclusive alguns alunos meus. Toca a avisar a instituição e sobretudo a dar quilométricas explicações. As pessoas não acreditavam. Estava junto uma aluna/estagiária que deu uma aula de arte dramática, negociando sua saída: passou de grávida a doente, primeiro com filho no hospital e depois com mãe muito mal. Terminou como grevista, com "bottom" e gritando palavras de ordem para ver se enganava a turba: nada feito, saiu junto com todo mundo.

Lá pelas 19h00 começou a bater a fome e os olhares se dirigiram para a cantina da SEPL, que por razões óbvias parece uma caixa forte. Tem cadeados, chaves e tetrachaves a gosto. Bom, presos podíamos estar, mas não havíamos perdido o senso de iniciativa e principalmente eles não contavam com a nossa astúcia.

Organizou-se uma caravana para pressionar a porta de um lado e outro grupo foi pela janela. Aliás, perceberam-se habilidades não sonhadas anteriormente: não é que tem um pessoal bom nessas coisas trabalhando lá? Mas a porta era poderosa. À medida que passava o tempo e nada acontecia enquanto a fome aumentava, o desespero e a pressão cresciam. Até que um colega da SEPL, forte e robusto como ele só, foi chamado: era a última esperança, se ele nada conseguisse havia que desistir. Pobre porta, (e parede) certamente não esperavam aquele assalto, voaram ambas: porta e parede. Estava aberta a sala do tesouro. Foi um jantar pra lá de adequado: pão com margarina e chá preto, enquanto se assistia aos jornais da TV.

Nisso abre-se a porta e entra um coronel da PM. Alívio, era como se tivesse chegado a cavalaria americana (lembram dos velhos filmes de faroeste?). O coronel parecia um "lord" inglês: apesar de estar no olho do furacão, pressionado por todos os lados, exalava calma e segurança. Veio dar notícias, pedir paciência e avisar que 10 pessoas iam ser libertadas, enquanto a negociação continuava. As 10 pessoas teriam que ser escolhidas pelo grupo, ele apenas garantiria a proteção delas ao sair. É bonito ver nessas horas, os sentimentos das pessoas. Há os que correm para ser os primeiros da fila enquanto há os que, como um comandante de navio naufragando, escolhem ser os últimos a sair. Não deixou de ser uma lição.

Perto das 20h00, começou a bater um cansaço, as piadas escasseavam e já era possível perceber uns olhares meio possessivos dirigidos a sofás e poltronas razoavelmente confortáveis pelos lados da recepção. Cada um já de olho num canto para passar a noite. Nessa hora, tão rápido como começou, tudo terminou: saímos em fila indiana, constrangedoramente ao som de um mal ensaiado Hino Nacional e iluminados por holofotes e flashes, escoltados pelo coronel em direção à porta do prédio. Lá fora, foi o momento de respirar fundo, verificar que enfim a integridade pelo menos física estava garantida e partir para outra, que afinal a vida segue.