Flagrantes: Cachorro ao rio

Autor: Pedro Luis Kantek Garcia Navarro

 

Antigamente, o grito era de “homem ao mar”. Nesta história, é de “cachorro ao rio”. Trabalhávamos todos, calmamente pensando, escrevendo e matutando, quando lá pelas nove e meia da manhã de um friorento dia de julho, veio a novidade: um cachorro havia caído na calha do rio Belém aqui ao lado. Graças aos céus, fazia frio e há muito tempo que não chovia: a calha estava meio seca, dava para o cachorro se movimentar e fazer muito, muito barulho.

A notícia se espalhou rápido e se o nosso prédio fosse algo mais frágil, era capaz de vergar tamanha a quantidade de pessoas que acompanhavam pelas janelas o drama canino.

Bote drama nisso, o infeliz animal gritava, uivava, latia e grunhia assustado. Era um pastor alemão, meio crianção ainda, animal tratado, via-se que fugira e dera-se mal.

Chamados os bombeiros, aqui compareceram, como anjos da guarda que são. Tá certo que salvar cachorros de rios não é bem a especialidade deles, mas eles não recusam serviço: puseram uma escada e dois deles desceram na calha na busca do animal, que, em vez de se mostrar agradecido pela ajuda e constrangido pelo transtorno, foi por outro caminho. Transformou susto e pavor em agressividade e nada de se deixar apanhar. Foi um corre-corre lá dentro, regado a gritos e latidos, ameaças e chamegos.

Aqui fora, juntara uma pequena multidão acompanhando o desenlace. Impossível permanecer impassível. Tanta gente apareceu e tamanha balbúrdia se fez que, na Lysimaco Ferreira da Costa (para os que não são de Curitiba, é uma rua que passa sobre o rio e ao lado da Celepar), o trânsito parou em desordem.

Um motoqueiro curioso, parou. Outro que vinha atrás também parou. Mas, devia ter parado antes, pois encheu a traseira da moto da frente. Ambas motos sairam voando. Esta para a direita, aquela para a esquerda enquanto o motoqueiro foi para a frente. Aterrisou lá longe, machucado e desacordado.

A platéia ululou. O espetáculo que já era grandioso, subitamente se vira recheado com mais drama e emoção. Os bombeiros que estavam por alí, chamaram seus colegas do SIATE para recolher o motoqueiro. Os resgatadores do cão saíram correndo do rio para acudir o motoqueiro enquanto os paramédicos não chegavam. Alguém chamou a DIRETRAN para tentar botar ordem no trânsito. O cachorro sentou para esperar.

Chega a ambulância, barulhenta como só ela, abre espaço na multidão, acode o motoqueiro, carrega-o e xispa para o hospital. O trânsito volta a fluir lentamente, e... aonde é que estávamos mesmo? Ah, no cachorro. Que continuava lá embaixo. Descem os bombeiros de novo, já sem muita paciência, que essa encrenca podia dar zebra bem maior. Cercam o bicho, agarram-no e sobem com ele até o nível da rua. A saída foi até engraçada: o cão fora laçado pelo pescoço e o bombeiro não estava a fim de se arriscar muito. Como tirá-lo de lá? O sujeito não se fez de rogado: puxava o cachorro pela corda. A platéia apupou: o pobre estava sendo esganado. Ia ser engraçado se para salvar o cachorro ele tivesse de ser enforcado. Enfim, aos trancos e barrancos, acabou. Aplausos para os bombeiros.

Terminando, a pergunta: o que fazer? Não há quem reclame o cachorro, não é o caso de levá-lo para algum lugar, então, os bombeiros soltam-no e vão embora, ligeirinho, antes que outra ocorrência os obrigasse a atuar.

O cachorro, repentinamente solto, ainda assustado, sai por aí. Foi na direção do Centro Cívico e inesperadamente voltou. Atarantado estava. Tanto que, ao cruzar a Lysímaco, uma freiada, uma nova quase colisão: um carro deixa de atropelá-lo por um triz. Quem da janela acompanhava, emitia opinião: isso não pode acabar bem.

Nessas horas, sempre há os defensores dos animais, ainda mais de um filhotão, bonito e garboso como só ele. Da janela, grita-se para o vigilante colocado no portão da Celepar: “atráia o bicho”, é o pedido. Com palavras amigas, é o que o vigilante faz. Com o animal para dentro do estacionamento, ele tranca o portão, para alegria geral.

Só que, um problema restou: ninguém entrava ou saía de carro da Celepar, que o cachorro podia fugir. Nesse impasse estávamos, quando uma alma caridosa que já tem 8 gatos e 8 cachorros em casa, pensa “para quem já tem 16, 17 não fará muita diferença”. Desce lá, carrega o bicho, sujo como ele só, bota-o no carro, até então impecável, e vamos para casa. Aliás, mandaram eu retificar uma parte mais escabrosa que por pudor eu havia omitido na primeira versão deste texto. Sujo o bicho estava, não há dúvida. Além de sujo, fedido. Borrara-se todo no episódio. Durante o stress, seus intestinos desarranjaram-se, uma lambança só.

O final da história? Lá chegando, foi uma dificuldade tirar o cão do automóvel. O danado gostara da mordomia. Até limpar o banco do carro, tirar o bodum, a catinga do cachorro, do carro, limpar a bolsa e as roupas, além de tomar banho, foram mais 2 horas de trabalho. Por volta das 15h todos, inclusive a feliz proprietária do desamparado, mas nessas alturas cheiroso cão, já haviam voltado a matutar, escrever e pensar.