Flagrantes: A máquina voraz

Autor: Pedro Luis Kantek Garcia Navarro - GAC

Era uma unidade de disco. Grandona como ela só e cara, pois alugada, custava um dinheirão todo mês. Naquele tempo não se comprava nada. Alugava-se. Entre o pedido e a chegada da máquina aqui no aquário nunca se passavam menos de 2 anos. O Governo Federal tinha de dar o "pode" e isto era coisa para anos. A máquina chegou, num caminhão imenso. Foi descarregada com todo o cuidado do mundo. Se caísse ou quebrasse ou tivesse um ataque de mal humor, só nos restava esperar mais 2 anos.

Era uma 3411, não tenho certeza, mas creio que tinha a capacidade de 7 megabytes, e, isto tenho certeza, o tamanho e o peso de um fusca. Quem olha para os discos rígidos de 100 Gigabytes com tamanho de 2 carteiras de cigarros pode descrer, mas eu garanto: pura verdade.

Essa máquina chegou aqui meio torta, não consigo achar palavra melhor. Já era usada, embora tivesse sofrido uma lanternagem em regra. Foi super difícil tirá-la do caminhão e mais ainda levá-la até seu lugar no aquário, Êta trambolho! Finda a epopéia e instalada a traquitana, coisa que foi rápida e urgente, levou só uns 15 dias, começamos a usar esse despropósito de área em disco. Imagine, prezado leitor, tínhamos 7 Megabytes em disco: não cabíamos no próprio contentamento, passou-me na cabeça agora aquele filme do Fellini, em que um bando de mendigos se banqueteia numa sala ricamente iluminada, com linda música, comendo do bom e do melhor. Assim éramos nós, humildes programadores, naqueles tempos de súbita fartura.

Como usada -- e bem usada -- era, a máquina vivia emperrando. A cada semana, vinha um técnico para o conserto. No começo, poucos perceberam, mas havia algo estranho com ela. Dizem que o canto da sala onde ela estava era o mais gelado da sala. Em poucos meses, depois de umas histórias contadas e conferidas, um murmúrio começou a percorrer os corredores da casa: aquela unidade comia coisas. Um dia era uma ferramenta, outro dia era um saquinho de parafusos, noutro dia era um diagrama das entranhas dela mesma, tudo misteriosamente desaparecia. Às vezes ruídos, sons, estrépitos e bulícios. Uns diziam que era velharia, outros alertavam que: aí tinha coisa. Sem falar que, de vez em quando, sumiam uns arquivos, com backup e tudo.

Teve um dia, que um técnico descrente, entrou na sala garganteando o fato e dizendo que os fofoqueiros de plantão estavam inventando coisas. O chefe da operação, também descrente, mas com anos de janela, yo no creo em las brujas, pero... mandou o cara falar baixo, a máquina podia ouvir e se vingar. O técnico, riu às escâncaras. Onde já se viu? Desmontou a medonha, entrou nela para o conserto, ficou até as 18 horas e na hora de ir embora, cadê a chave do carro? A notícia se espalhou que nem derrame de gasolina na Serra do Mar. Em pouco tempo todos sorriam à sorrelfa. Mais uma vítima.

O sujeito não se conformou. Já era apontado do lado de fora do aquário, motivo de chacota, quase desmontou tudo até achar lá dentro as malditas chaves. Na cabeça dele deixara-as cair lá dentro, mas na opinião unânime, a 3411 aprontara mais uma. Em outra ocasião, uma peça mais apertada, exigiu uma força adicional e um certo desjeito do técnico acabou resultando num pequeno corte na mão. Acidente simples e banal, mas na rádio corredor já transformado em o ataque do disco assassino.

Mas, como tudo na vida, chegou a hora da unidade ir embora. Nesse dia, muita gente foi acompanhar o desmonte e a despedida daquela que fora nossa companheira por quase 3 anos. A máquina comportou-se como máquina, nenhum desaforo ou malcriação. A turma já estava respirando com mais alívio quando alguns dias depois veio a notícia: a máquina fora levada a um barracão aqui perto. Como já era usada (mais do que usada), ficou meio esquecida lá. No fim do ano quando veio a contagem para o balanço, tivemos o grand finale: a própria máquina desaparecera. Ela mesma dera conta de sí própria. Não estava mais lá onde fora depositada. Uma auditoria, criada a propósito não deu em nada. Não se teve notícia dela. Evaporara-se, escafedera-se. Nunca mais se ouviu falar do caso.

Acredite se quiser...