Marcos Sunye/ Diretor do Centro de Computação Científica e Software Livre (C3SL) da Univ

Tecnologia sem barreiras

por GABRIEL TABATCHEIK COMIN

O domínio tecnológico não é característica exclusiva dos programadores das grandes empresas de informática. A formação profissional é um importante instrumento para romper barreiras e dominar novas tecnologias. São esses profissionais que no futuro vão estar nos processos decisórios das empresas e que poderão exercer influência na comunidade. Este é o pensamento de Marcos Sfair Sunye, 42 anos, diretor do Centro de Computação Científica e Software Livre (C3SL) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Segundo Sunye, o modo que o mundo encara a tecnologia pode ser alterado com dois ingredientes: programas de código aberto e a vontade de aprender como as coisas funcionam. O dogma da informática, a caixa preta dos programas proprietários, não precisa ser aberta. Basta desenvolver uma nova mentalidade nos estudantes com a tecnologia livre, sem barreiras.

Alguns frutos dessa nova mentalidade já estão sendo colhidos. Na UFPR, o grupo de Sunye desenvolveu uma forma de conectar quatro conjuntos de monitor, teclado e mouse em um único computador, sem queda de desempenho. É o computador multiterminal, no qual quatro pessoas podem usar a mesma máquina. E essa descoberta vai ajudar o Governo do Paraná a ligar em rede 44 mil computadores em todas as 2.100 escolas estaduais do Paraná.

Bate Byte – O software livre é uma tecnologia que vem crescendo e conquistando espaço. No entanto, ainda existe muita resistência a esse tipo de programa, seja por desinformação ou pelo comodismo de quem já está acostumado com os produtos dos sistemas fechados tradicionais, como Windows. Frente à essas dificuldades, qual seria uma boa forma de difundir o uso dos programas de código aberto?

Marcos Sfair Sunye – Acredito que a difusão do software na Internet, os eventos e a comunicação em geral ajudam, mas são atividades complementares. O que pode mudar a realidade de maneira decisiva é uma formação mais profunda dos profissionais de informática. São eles que vão estar nos processos decisórios das empresas do futuro e que vão influenciar a comunidade. E essa formação profunda passa pelo entendimento de que o uso do software livre é recomendado porque ele possui uma melhor qualidade. A questão não é difundir o software livre porque ele é gratuito ou por causa de um posicionamento ideológico. Isso resultaria em uma migração forçada. As pessoas devem procurar os programas de código aberto simplesmente porque eles são melhores que os fechados. Sua empresa vai funcionar melhor, o computador de sua casa vai travar menos, e por aí vai. Aqui em Curitiba isso já é uma realidade. Uma grande empresa de comunicação migrou para Linux porque a direção do departamento de informática, formada por ex-alunos nossos, indicou que o software livre é a melhor estrutura.

BB – Se a questão não é ideológica ou financeira, então porque o software livre é melhor do que os programas proprietários?

Sunye – Quando se desenvolve um programa de código aberto, a relação entre quem fez o software e a pessoa que o usa muda completamente. Isso porque é possível ver como o produto foi feito. Então existe o questionamento, a reflexão. A chance do usuário contribuir com o desenvolvedor é maior. Com o passar dos anos, as grandes corporações de software fechado foram perdendo o contato com o usuário. Uma sugestão de mudança no sistema ou colaboração de alguém que achou um erro passa por quatro ou cinco camadas da empresa até chegar no programador. E como não há acesso ao código, fica mais difícil de contribuir. Mas quando o sistema é livre, o usuário pode ser um grande aliado do programador. O software é testado e dissecado por usuários que procuram erros. Por causa disso, as atualizações são mais constantes, os buracos estão sempre sendo fechados. É uma construção coletiva, contribuição de muita gente. Isso melhora decisivamente a qualidade do produto. Então a gente tem aí um modelo de desenvolvimento que tem mais vantagens que falhas. Outra vantagem é a flexibilidade. O software é customizado, você configura em função das necessidades da sua máquina. Você adapta o sistema às suas necessidades, e não o contrário. Existe também a questão da segurança. A maneira que o sistema Linux foi construído não permite que os famosos vírus do Windows atuem. Claro que o sistema ainda pode ser invadido, mas não por vírus, ou pelo menos não o que a gente chama de vírus para Windows. Então a gente pode dizer com certeza que ele é o sistema mais protegido contra as invasões corriqueiras.

BB – Todos os setores da Universidade Federal do Paraná usam software livre?

Sunye – Para responder essa pergunta precisamos classificar duas realidades: a parte administrativa da universidade e a acadêmica. A primeira tem uma longa cultura no uso de software proprietário, apesar da gerência de rede e métodos de segurança utilizarem código aberto, no caso, o Linux. A maioria das grandes corporações de hoje têm esse perfil híbrido. Agora, na parte acadêmica, alguns cursos já fazem uso pleno de Linux há anos. É o caso de Ciência da Computação, Física e Estatística. A maior resistência está nas engenharias e na arquitetura, isso porque já existe uma cultura no uso de softwares proprietários, feitos especialmente para essas áreas. As pessoas têm dificuldade ao tentar trabalhar com outros programas.

BB – Mas a resistência dos usuários de engenharia e arquitetura ao uso de software livre não é compreensível? Existem programas de código aberto desenvolvidos especialmente para as áreas desses profissionais?

Sunye – Existem, mas eles são funcionalmente um pouco diferentes. Um software desses não é, digamos, “simples” como um editor de textos. Se você trocar o Microsoft Word pelo OpenOffice Writer (software livre) sentirá pouca diferença, principalmente se não for um usuário avançado. E mesmo que um editor de textos ofereça grandes opções, o usuário padrão não faz uso delas. Já um software de geoprocessamento, por exemplo, exige um envolvimento maior do usuário com o produto. É mais difícil convencer alguém que está acostumado com um software denso a mudar o jeito de trabalhar. As possibilidades dos programas são as mesmas, mas a forma de operá-los é que muda um pouco. Quando trouxemos o software livre para a Universidade, percebi que o usuário que faz o migrar. Ele mal percebe que houve mudança no sistema operacional. Já o usuário que é superavançado, dependendo da aplicação que ele faz, também é capaz de mudar para os programas abertos. O problema está na pessoa de nível intermediário.

BB – Por muito tempo, software livre foi considerado sinônimo de “difícil de ser usado”. Quem participa do meio acadêmico consegue compreender as vantagens da tecnologia e superar as eventuais dificuldades. Mas na comunidade, como fica a migração? A sociedade pode procurar por esses programas e usá-los sem problemas?

Sunye – Hoje em dia existem sistemas operacionais que podem ser instalados facilmente, o que conta pontos para o uso de software livre. O Kurumin e o Ubunto são bons exemplos. Esse pessoal fez um trabalho imenso para facilitar a instalação sem comprometer a segurança. Porque essa é a grande questão do Windows: ele é muito fácil de instalar, mas em compensação tem muitos “furos”. Infelizmente, por muito tempo, a relação entre facilidade de instalação e segurança funcionava como os dois lados de uma gangorra: se um é alto, o outro é baixo. O Kurumin e o Ubunto estão trabalhando para que os dois quesitos sejam elevados. É uma barreira que está começandoa ser derrubada. Outro obstáculo é o jogo. A pessoa não migra porque uma série de jogos não existem para Linux. Essa realidade também está mudando lentamente. Mas lógico, se o sujeito gosta de um jogo que existe só para Windows, a tendência é a inércia. Os softwares de multimídia, como MSN e Skype, por muito tempo foram dificuldades, mas hoje já existem muitas versões para sistemas abertos. E tudo isso tem vindo com uma velocidade muito grande. Mesmo as pessoas que há alguns anos eram céticas quanto ao uso doméstico do Linux, hoje já estão começando a achar que mudanças são possíveis.

BB – Você falou que a grande mudança no modo de encarar o software livre só vem com uma preparação adequada dos profissionais de informática, porque eles é que vão orientar a sociedade quando ao uso e desenvolvimento desses programas. Como o curso de Ciências da Computação da UFPR aborda o software livre?

Sunye – Leciono a disciplina de sistemas de bancos de dados. Quando você ensina uma disciplina dessas usando um software em que o aluno pode ver como ele funciona, o grau de compreensão dele é muito maior. Outra característica é como a tecnologia chega para o aluno. Disponibilizar software livre para o estudante é o mesmo que dizer: “o domínio tecnológico não depende de você ser empresário de uma firma norte-americana ou o quem quer que seja, depende só de você mesmo”. Nós ensinamos a linguagem em que o código foi feito. Cabe ao aluno entender e fazer bom uso. Então a postura deles é completamente diferente. Está em igualdade de condições com qualquer outro aluno de qualquer outra universidade do planeta. Assim, a tecnologia deixa de ser uma barreira, aquela que afirma que softwares são coisas feitas por pessoas muito inteligentes, em países muito avançados, e que a gente não vai conseguir fazer. É o desenvolvimento do espírito de prospecção, de abrir, de ver como é que funciona e de ter o domínio. Se puxarem o cabo da Internet do Brasil, a gente se vira. E nem todos os ambientes empresariais podem dizer o mesmo. Essa autonomia tecnológica é algo muito importante.

 

BB – Existe na UFPR um grupo de estudos com a função de aprofundar o conhecimento em software livre e em tecnologias abertas para a sociedade. Como surgiu essa idéia e como vocês trabalham?

Sunye – O Centro de Computação Científica de Software Livre, C3SL, é um grupo criado por pessoas que já há algum tempo defendem e tentam fortalecer o uso do código aberto dentro da nossa comunidade, da Universidade e no Estado. O grupo está ativo desde setembro de 2003. A única exigência que fazemos para trabalhar conosco é que usem somente software livre. Uma das nossas formas de atuação é a prestação de serviços à comunidade. Um deles é a hospedagem de mirrors, ou seja, recebemos cópias de softwares que são originalmente disponibilizados em outros lugares para que a pessoa que está no Brasil possa baixá-lo mais rapidamente do que usando o endereço original. Somos o único mirror sul-americano e o primeiro da América Latina do Sourceforge, que é o maior portal de software livre do mundo. Além disso, temos mais de 100 mil projetos hospedados aqui. Também temos parcerias com diversos órgãos como as secretarias de Estado, Celepar, Câmara Municipal de Curitiba e outros. Alguns parceiros nos procuram para promover a migração para o Software Livre, como é o caso da Câmara de Curitiba. Outros para compartilhar conhecimentos, como a Celepar. A inovação tecnológica é outra área em que procuramos ajudar. Um bom exemplo do nosso potencial é o desenvolvimento do computador multiterminal.

BB – O multiterminal é uma tecnologia desenvolvida por vocês que permite conectar vários conjuntos de mouse, teclado e monitor em um único computador, sem a perda de velocidade. Com surgiu essa idéia?

Sunye – O multiterminal surgiu do aprofundamento da idéia de um estudante carioca. Em 2002 ele conseguiu ligar um par de teclados, mouses e monitores em um só computador para poder navegar na Internet ao mesmo tempo que a namorada. Um aluno nosso leu isso em uma lista de discussão e começamos a estudar formas de aproveitar melhor a “descoberta”. Nossa conclusão foi a de que os computadores caseiros de hoje têm um potencial que não é aproveitado. Chega um ponto em que ter peças mais sofisticadas não representa ganho nenhum. Então, aprofundando a idéia daquele estudante, conseguimos conectar quatro conjuntos. Batizamos a idéia de “multiterminal”. Quatro pessoas, cada uma na sua poltrona, operam um conjunto de mouse, teclado e monitor ao mesmo tempo, e o computador não perde velocidade por causa disso. Para ter uma idéia do potencial que é desperdiçado com esses supercomputadores, conectamos oito conjuntos em um deles, sem grandes perdas. Além disso, usamos nos nossos laboratórios uma tecnologia conhecida como “boot remoto”. Para usar um computador com boot remoto a pessoa precisa ter um usuário e senha. Todos os documentos, arquivos, tudo o que ele salvar estará guardado no servidor central e não na máquina que ele usou. Isso permite que a pessoa acesse suas pastas por qualquer computador do Departamento de Informática. É como se fosse um serviço de e-mail, que você acessa de qualquer lugar. O multiterminal representou uma grande economia. Instalamos o primeiro laboratório com a tecnologia em abril do ano passado. Um dos nossos laboratórios tem somente 15 computadores, mas 60 pessoas podem usá-los ao mesmo tempo, aproveitando conjuntos antigos. Essa tecnologia, desenvolvida pelo Centro de Computação Científica de Software Livre, também é aberta. Fornecemos para quem estiver interessado, como se faz com o software livre. Todos os documentos, arquivos, tudo o que ele salvar estará guardado no servidor central e não na máquina que ele usou. Isso permite que a pessoa acesse suas pastas por qualquer computador do Departamento de Informática. É como se fosse um serviço de e-mail, que você acessa de qualquer lugar. O multiterminal representou uma grande economia. Instalamos o primeiro laboratório com a tecnologia em abril do ano passado. Um dos nossos laboratórios tem somente 15 computadores, mas 60 pessoas podem usá-los ao mesmo tempo, aproveitando conjuntos antigos. Essa tecnologia, desenvolvida pelo Centro de Computação Científica de Software Livre, também é aberta. Fornecemos para quem estiver interessado, como se faz com o software livre.

BB – E agora que a idéia do computador multiterminal já foi desenvolvida e está sendo usada, qual é o projeto mais ambicioso que o Centro de Computação Científica de Software Livre participa?

Sunye – Atualmente o maior projeto em que atuamos é o Paraná Digital, no qual somos parceiros do Governo do Estado. Nossa meta é instalar 44 mil computadores em todas as 2.100 escolas estaduais que existem no Paraná. Teremos uma média de 20 computadores por escola. E para aproveitar melhor os recursos, vamos usar o multiterminal nelas dinheiro investido. Mas a idéia não se limita a oferecer computadores às escolas. Cada estabelecimento de ensino vai ter um servidor potente, que vai armazenar todas as informações, como se fosse a memória, o HD da escola. E cada um desses servidores vai estar ligado em um núcleo central da Celepar, em Curitiba. Para isso vamos utilizar as vias de fibra óptica da Copel e de Internet via rádio em algumas localidades remotas para ligar em rede todos os 2.100 servidores. Todas as escolas estaduais do Paraná estarão integradas. O maior problema ao colocar laboratórios de ensino em regiões remotas é manter a máquina funcionando e instalar ou atualizar softwares. Esse problema vai ser resolvido por uma tecnologia gerada pela UFPR e que está sendo repassada para a Celepar, pela qual a equipe de administradores de Curitiba vai conseguir administrar às máquinas à distância. Por exemplo: daqui de Curitiba vamos ser capazes de instalar um novo software em todas escolas do Estado em poucas horas. Como os computadores estão ligados no servidor central, teremos cópias de segurança dos arquivos de todos os usuários, o que é ótimo, pois não há o risco de ninguém perder nada. Também será possível saber se as máquinas estão tendo um bom uso, que tipo de páginas são acessadas. Também poderemos saber com que freqüência os computadores estão sendo usados e assim vamos ter a demanda exata de cada localidade para direcionar investimentos futuros. A interface também foi especialmente desenvolvida e é fácil de ser operada tanto por alunos quanto por professores que não estão acostumados a trabalhar com a Internet.

BB – Quando o Paraná Digital começa a funcionar?

Sunye – Os equipamentos já foram licitados e a interface especial já foi concluída. Em pequena escala, o Paraná Digital já está funcionando, pois algumas escolas estão testando a idéia. Outros detalhes precisam ser conferidos, mas a nossa expectativa é que o projeto se transforme em realidade no mês de setembro.

BB – Conversamos sobre tecnologia digital e é possível perceber a importância da Universidade nisso tudo. Na sua opinião, qual deveria ser a missão de uma instituição universitária nesse século XXI?

Sunye – O papel é apontar para a melhor tecnologia e passar o conhecimento da melhor maneira, investir nosso tempo na qualidade do ensino. Ao mesmo tempo, temos que fazer a prospecção, a pesquisa, fazer o conhecimento avançar, principalmente em projetos que precisam de um tempo maior de desenvolvimento, justamente aqueles que o mercado não consegue englobar. Então a instituição Universidade deve ser capaz de gerar conhecimento e repassá-lo para a sociedade. Mas volto a dizer, o que a gente precisa fazer, que é o mais importante, é formar bons estudantes, boas pessoas. Isso é permanente. Isso ajuda a mudar a realidade.