O ABC visto pelo outro lado

Autor: Adilson Fabris


O filósofo Liebnitz entende a realidade como a visão de um arco e não de uma reta. Conseqüentemente, a realidade apreendida depende do ponto de vista no qual se posta o observador. Dentro da informática, existe um senso comum quanto à divergência existente entre a perspectiva do usuário e do analista. É como uma folha de papel, com desenho de ambos os lados que, embora intimamente relacionados, jamais poderão se encarar.

Para desmistificar esta premissa tendenciosa, o Bate Byte, que já havia se dedicado em mostrar o sistema ABC pelo prisma dos técnicos envolvidos em seu desenvolvimento, foi ouvir o cliente, para que ele nos contasse seu ponto de vista, dando-nos uma visão complementar, mais prática e menos técnica, da importância deste sistema no cenário educacional do Estado.

Maria Dolores Martinez Dib, ou professora Lola, como é mais conhecida, responsável e, de certa forma, idealizadora do ABC no cliente, foi ouvida pelo Bate Byte em junho deste ano. Lola possui um extenso currículo na área educacional, adquirida nos 33 anos de exercício da profissão. Foi professora, diretora de escola, coordenadora de equipe de núcleo, chefe de núcleo, assistente de núcleo, superintendente da educação no Estado na gestão Álvaro Dias e, atualmente, é coordenadora dos núcleos regionais de educação.

Quais foram os fatores que geraram a necessidade do desenvolvimento de um sistema de proporções tão abrangentes quanto o ABC?

Essencialmente, o que gerou esta necessidade foram as dimensões da estrutura educacional do Estado. Temos 2 milhões de alunos, 12 mil escolas, 380 municípios, 30 núcleos regionais, perto de 100 mil professores e funcionários. São números muito grandes. Precisamos planejar com efetividade quantas salas de aula são necessárias, quanto material escolar, carteiras, enfim, recursos não só materiais mas também financeiros. A parte da merenda escolar, da saúde escolar também precisam ser planejadas. Sentíamos dificuldades para realizar este planejamento por não se ter dados confiáveis. Tínhamos o sistema SAE (Sistema de Administração Escolar), que nos fornecia dados apenas da rede estadual, não tínhamos os dados da rede municipal. Enquanto não houve a municipalização do ensino, o sistema nos atendia razoavelmente. Nós cuidávamos do Estado e o município, do próprio município. Mas ao se municipalizar, passamos a exercer este controle, passando recursos ao município de acordo com o número de alunos atendidos pelo município e de sua arrecadação. Para isto, precisávamos de dados absolutamente confiáveis. Os relatórios das escolas nos chegavam com até 2 anos de defasagem. Todos nossos dados são de 1990.

Esta situação nos forçou a buscar uma saída. Como tínhamos uma experiência muito bem concretizada com o SAE, implantado há mais de 10 anos, que já era uma experiência inovadora, copiado por todo o Brasil, cujo resultado positivo se deve muito ao trabalho da CELEPAR junto aos nossos técnicos, tivemos a ousadia de colocar em um sistema estes números todos.

Como se deu a gênese do processo?

O começo foi uma coisa muito modesta. Queríamos apenas cadastrar os alunos. Já que estávamos cadastrando, começamos a levantar mais dados a respeito deles. No princípio, apenas informações básicas, que foram sendo ampliadas. Isto entusiasmou o Secretário, o Governador, o Superintendente da Fundepar e eles deram toda a cobertura para que motivássemos a CELEPAR. Em julho do ano passado, fizemos o cadastramento dos alunos; em dezembro, confirmamos matrícula; em março, mandamos já a relação nominal dos alunos nos registros de classe. O processo estava desencadeado.

Um sistema desta envergadura, com certeza, envolve um desenvolvimento e uma conseqüente manutenção muito dispendiosos. Cite alguns dados que vocês levantaram na análise custo-benefício que justificasse este investimento.

O ABC irá substituir mais de 20 documentos que eram feitos pela escola. Agora a escola nos informa e estes documentos sairão via informatização. Anteriormente, estes documentos eram preenchidos manualmente e, por serem documentos oficiais, não poderiam ser rasurados. O resultado era um desperdício de documentos. O levantamento apontou um desperdício de 1 bilhão e 96 milhões de cruzeiros no ano de 1991. Este cálculo é com base nos índices de maio de 92. Era muito papel jogado fora. Numa relação custo-benefício, apesar do custo de implantação ser alto, o retorno que traria seria muito mais significativo.
Outra justificativa é o controle total do aluno atendido pelo município. Este controle é imprescindível, pois passamos os recursos para o município por aluno. Se o município tivesse 700 alunos e nos informasse 900, estaríamos passando recursos da ordem de 200 alunos x 409 mil cruzeiros/mês (dados de junho), o que é um ônus para o Estado. Esta discrepância não é nem por desonestidade. O município simplesmente não tem os dados corretos.

Qual é o contingente humano envolvido no processo?

Teremos, além dos técnicos da CELEPAR, 15.000 pessoas que estarão ligadas diretamente ao ABC no Paraná todo. São secretários de escolas, diretores, professores (pelo menos 3 em cada escola que estarão a par do sistema), supervisores. Só neste treinamento estão sendo investidos perto de 4 milhões de cruzeiros (dados de junho). O objetivo é formar pessoas que não apenas reproduzam o sistema, mas pensem o sistema, nos fornecendo feed-back.
Um sistema que envolve tantas pessoas e que mudará radicalmente o processo de acompanhamento do aluno tende a sofrer algumas resistências. As pessoas são refratárias a mudanças. Vocês estão sentindo alguma dificuldade neste sentido?

Sentimos alguma resistência, sim. Os professores estão tendo um pouco mais de trabalho neste momento. Qualquer mudança que você faça, seja em sua vida particular ou profissional, implica em troca da rotina e, conseqüentemente, desequilibra um pouco. Então, para que o equilíbrio retorne, é preciso consolidar esta rotina. Este é um processo complexo. Mas, de qualquer forma, a resistência é muito pouca. As escolas estão empolgadas com a possibilidade e nos têm mandado sempre sugestões de melhorias. Para o próximo ano, 200 escolas do Paraná sofrerão descentralização. Percebemos que estes estabelecimentos estão entusiasmados com a mudança.

Estamos acostumados, também, com resistência, porque trabalhamos inovando sempre. Logicamente, não por inovar apenas, mas o mundo caminha a mil por hora e a escola não pode ir a reboque da ciência. Ela tinha que ser profeta. Ela tinha que antever o futuro.
Você falou na ousadia do projeto. Ele é, então, um projeto pioneiro, não existindo nada similar no Brasil?

Não existe nada semelhante no Brasil e, até onde sei, não existe na América Latina um trabalho igual a este. Excetuando algumas escolas particulares e um sistema nos municípios de Curitiba e Cambé, por exemplo, que não podem ser comparados, pois não estão interligados, são incompatíveis com o novo e administram 56 mil alunos contra os 2 milhões nossos, o projeto é 100% pioneiro. Apresentamos o projeto para os secretários de educação do país e eles ficaram extasiados com as possibilidades.

Falando um pouco ideologicamente agora, existe uma crença tendenciosa em afirmar o sucateamento do ensino público. Normalmente, esta acusação sempre recai na conjuntura que estiver, naquele momento, no poder. Esquecemos que existe toda uma cronologia e nos limitamos a fazer um corte sincrônico na realidade, ignorando o diacronismo do processo. Em que medida o ABC poderá contribuir para atenuar esta imagem vilipendiada do ensino público?

O Governador já manifestou seu interesse de transformar o ensino público em uma opção viável, não apenas uma opção empurrada pelo alto custo da escola particular. A escola pública perdeu sua pujança com a evasão da classe média das salas de aula. A classe média é que tem o maior poder mobilizador, por ser mais esclarecida, mais influente, formadora de opinião. A escola pública foi relegada à classe baixa, que se baseia na premissa que não se pode questioná-la por ser de graça.

A escola, por sua vez, acomodou-se e jogou a culpa dos baixos índices de aprendizagem para a população. Mas, curiosamente, o processo inverso tem se manifestado, nos últimos tempos. Curitiba, Ponta Grossa, Londrina, Maringá e, em menor escala, Cascavel, estão sentindo um retorno da classe média à escola pública. O ABC pode aí diagnosticar não só o rendimento do aluno, mas o próprio rendimento do professor. É extremamente comum depararmos com casos de professores que, devido a frustrações particulares, reprimem o aluno, que se sentirá tentado a abandonar a escola.

Existe então uma "dialética da repressão" que contribui para o baixo aproveitamento do aluno?

Com certeza. Não só as condições sócio-econômicas contribuem para que isto ocorra. A escola também expulsa.

Voltando à questão, o aluno, como agente final do processo, pode ser também avaliado a nível de rendimento de aprendizagem e não apenas tratado como mero dado estatístico?
Isto está em projeto para o próximo ano. Pretendemos manter mala direta com os pais dos alunos. Por exemplo, podemos manter contato com os pais, mandando-lhes o histórico do aluno, o índice de rendimento individual e o do resto da turma. Por comparação, o próprio pai poderá avaliar o desempenho do aluno. Em casos de excesso de faltas, poderemos emitir cartinhas alertando-os quanto ao baixo índice de freqüência. Poderemos manter controle, também, sobre o conteúdo ministrado na sala de aula, estabelecendo um padrão mínimo de currículo. Normalmente, o pai entrega o filho à escola, que trata tudo de forma descompromissada. Queremos reverter este processo.

Quanto aos professores, por amostragem, poderemos avaliar o rendimento da turma e o nível de desistência, alertando o professor, questionando seus métodos. Na verdade, nosso maior problema é a desistência. O aluno entende que, se já estiver reprovado em meados do segundo semestre, é melhor desistir. Os próprios professores recomendam esta atitude, o que ocasiona o esvaziamento da sala de aula.

O ABC, agindo também em conjunto com o sistema SAEB da Fundepar, que mede o rendimento cognitivo do aluno, mais as avaliações de desempenho, fecharão o cerco em torno da escola, ajudando a identificar as falhas. São atitudes que não ajudam a resolver o problema, mas instigam a busca de soluções. Para nós, apenas levantar o problema não basta, pretendemos fornecer subsídios para que o problema seja resolvido.

Como última pergunta, como tem sido trabalhar em conjunto com a CELEPAR? Os técnicos refletem toda esta empolgação também? O retorno tem sido positivo?

Ouso dizer que o processo em que estamos envolvidos é dinâmico e tende ao infinito. Um sistema desta envergadura está implantado, mas não ainda implementado. Temos sorte de trabalhar com uma equipe de técnicos que, assim como eu, não se contentam com pouco. Eles não se limitam a fazer o que pedimos, mas também contribuem com sugestões para que o sistema fique cada vez mais completo. Neste sentido, o retorno tem sido altamente positivo e nós, aqui, conhecemos o empenho dos técnicos da CELEPAR que, por vezes, para que o sistema se concretizasse, abriram mão de finais-de-semana e noites de sono. Muitas das possibilidades que o sistema hoje apresenta não seriam fatos se não contássemos com esta participação.