O DIA EM QUE CURITIBA PERDEU A CABEÇA

Autor: Jair Fernandes

Há um dia em que a mais pudica das damas é capaz de entregar-se aos delírios excitantes de uma fúria louca. A Curitiba vaidosa e narcisista dos dias atuais, lembra uma daquelas senhoras de reputação impecável, aparência cuidadosamente zelada, dona de um mistério doce e, ao mesmo tempo, fugaz. A história contada aqui pretende ruborizar esta senhora, despindo um pouco do seu passado e trazendo à tona o dia em que, num acesso de loucura, a cidade enfureceu-se, tornando-se manchete nos principais jornais do país. O motivo não poderia ser mais conveniente - um pente.

Curitiba, terça-feira, 8 de dezembro de 1959. A tarde chegara lentamente ao seu final e tudo indicava ser mais um daqueles dias rotineiros de cidade grande, onde as pessoas correm de um lado para outro como formigas atrás da sua toca. O ponto focal e início do tumulto foi a conhecida Praça Tiradentes. O local é de grande movimento popular e onde, até hoje, circulam pessoas de todas as idades, raças e credos. Ali localizava-se o Bazar Centenário, um ponto comercial muito conhecido e procurado pelos Curitibanos da época.

O proprietário do estabelecimento era um sírio (ao que tudo indica) de pavio curto e sangue quente. Naquele final de tarde, chegava ao Bazar um jovem oficial com a intenção, aparentemente inocente, de comprar um pente. Os jornais da época não trazem uma versão detalhada sobre o início do tumulto, todavia, compreende-se que ao elaborar a nota fiscal, o proprietário do Bazar cometeu um grave crime, ao invés de descrever detalhadamente o pente que estava sendo adquirido, fez constar a descrição do produto, genericamente, como despesa. O fato irritou o oficial e acabou sendo estopim de uma avalanche de desaforos às progenitoras dos envolvidos.

Após a tradicional batalha verbal, partiu-se para a segunda etapa dos murros e pontapés. A peleja foi feia e atraiu grande platéia, com as pessoas que circulavam pela redondeza. O oficial acabou indo a nocaute - soube-se mais tarde, que fraturara a perna direita. O sírio saiu "ileso". Da nota fiscal, infelizmente, não se tem notícia.

Enquanto a luta tomava corpo, a população foi-se aglomerando nas imediações do Bazar. A vitória do sírio causou indignação e grande parte do povo (não se sabe ao certo se incitado por alguém) tomou as dores do oficial e, com uma fúria repentina, adentrou violentamente no Bazar quebrando e saqueando todo o estabelecimento. Mas as coisas não pararam por aí, a revolta continuou e assumiu proporções ainda maiores. As ruas foram tomadas por uma multidão enfurecida. Os estabelecimentos comerciais encontrados no caminho iam sendo devastados um a um.

A polícia teve dificuldades e o exército entrou em cena. Um grande número de soldados dirigiu-se para as zonas de conflito e, horas mais tarde, conseguiu contornar o problema (segundo jornais, até tanques ficaram de prontidão aguardando momento para intervir). A vigília permaneceu por mais alguns dias e as aglomerações populares eram forçosamente dispersadas, até que se acalmaram os ânimos e tudo voltou ao que se chama de normalidade.

Como saldo final, o tumulto teve muita violência, várias pessoas feridas e grandes prejuízos financeiros trazidos pelos saques no comércio local.

Conhecendo a história, e sabendo da sua veracidade, uma pergunta parece inevitável. Como uma situação tão banal em torno de um pente, pôde proporcionar tamanha fúria? Evidente que as péssimas condições sociais da época formavam uma atmosfera favorável a este tipo de revolta popular - a insatisfação coletiva forma, com o tempo, uma espécie de barril de pólvora sedento pela faísca. Mas há um ponto neste episódio que cabe uma reflexão interessante. O fato deu-se no terreno da administração. O cliente entrou no estabelecimento com a demanda explícita de adquirir um pente (tivesse se dirigido a outro local e tudo poderia ser evitado). Mas os acontecimentos provaram que havia, no cliente, algo mais...

Por alguns instantes, estes atores, esqueceram-se que faziam parte de um sistema produtivo. Neste espaço, não há lugar para paixões e delírios, o que prevalece é o relacionamento de cunho científico. O tratamento das questões em torno do relacionamento com clientes não é tão simples quanto pode parecer. Exige, às vezes, grande controle de impulsos apaixonados. Identificar quem é o cliente, e ter a clareza e flexibilidade suficientes para equacionar situações de conflito, são importantes armas nesta seara. O espaço que envolve todo o atendimento ao cliente é demasiadamente complexo e exige clareza conceitual em questões envolvendo clientes, demanda, produto, gestão e sobrevivência da empresa. Situações aparentemente simples, se não tratadas devidamente, podem levar a verdadeiras catástrofes.

 

Os problemas oriundos do campo social, tanto nas grandes cidades, como no campo, têm se demonstrado indissolúveis para a humanidade com o passar do tempo. Mas os comerciantes da Praça Tiradentes podem respirar aliviados, afinal, hoje, a realidade é outra e não se tem, em Curitiba, uma situação propícia a este tipo de revolta popular. Mas a lição vale para todos, por precaução, nada de desaforos com clientes. Melhor "fazer a nota fiscal" como manda o figurino.

 

Referências Bibliográficas:

01 . O ESTADO DO PARANÁ. Curitiba, 09-10 dez. 1959.

02. O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo, 10 dez. 1959