O grego diofante, os fundamentalistas de todos os credos e as autoridades certificadoras digitais

Autor: Pedro Luis Kantek Garcia Navarro - GAC  

Diofante, um matemático grego bacana que viveu há uns 1800 anos, não se sabe direito, deixou um dos grandes legados na história do homem: a obra denominada Aritmética, composta de 13 volumes. Ele tratou dos números e dos problemas envolvendo números. (Hoje tais problemas, com números inteiros, são chamados, em sua homenagem, problemas Diofantinos). Da série de 13 livros apenas 6 sobreviveram à Idade das Trevas e só servem para dar um gostinho irresistível na boca, quando se imagina o que se perdeu nos outros 7. Um desses livros deu origem ao "último Teorema de Fermat" que acaba de ser provado pelo inglês Andrew Willes, e essa é outra história. Maravilhosa também, mas é outra história. Veja-se que naqueles tempos não era moleza escrever livros. A tarefa era manual e cansativa, não se podia errar, e ao final de anos de trabalho tinha-se um único exemplar. Os mais previdentes, sabedores da raridade do objeto, corriam a guardá-lo em uma biblioteca. Os demais, pareciam não se importar muito. Mais de 99% das pessoas era analfabeta, e a maioria dos sujeitos que viveram grande parte desse interregno de 2 milênios nasceram e morreram sem ter visto um livro.

Mas, menos mal, já havia bibliotecários e bibliófilos. Na cidade de Alexandria, no Egito, esses amantes dos livros construíram, organizaram, alimentaram e mantiveram a Grande Biblioteca de Alexandria. Conta-se que por mais de 8 séculos, a biblioteca brilhou tal como o farol da cidade. Seu primeiro golpe foi um ataque de Júlio César contra Cleópatra em 47 (aC). No arranca-rabo, o porto foi incendiado e a biblioteca acabou pegando fogo. Cleópatra deve ter feito beicinho, tanto que Marco Antônio, outro romano, acabou atacando a cidade de Pérgamo (de pergaminho), saqueou a biblioteca de lá e levou tudo para a reconstruída Alexandria. Conta-se que cada viajante que entrava na cidade era minuciosamente revistado e se tivesse um livro com ele, imediatamente era "convidado" a emprestar o livro aos copistas da biblioteca que só o devolviam depois que um segundo exemplar era zelosamente guardado.

Tudo teria corrido mais ou menos bem, se o bicho homem não tivesse se envolvido em mil e uma guerras e estrepolias. A primeira é devida ao bispo cristão Teófilo. Em 389 (dC), tendo recebido a ordem de destruir todos os monumentos pagãos, pôs mãos à obra. Por azar, Cleópatra montara a biblioteca em um templo dedicado ao deus Serápis: lá se foram os livros para a fogueira, de novo. Dois séculos depois, em 642, logo após a disseminação da religião de Maomé na região e considerando a decadência de Alexandria, esta foi cercada, invadida e saqueada. Dizem que após entrar na cidade, os soldados vieram perguntar ao califa Osmar, chefe da invasão, a respeito do que fazer com os livros. A resposta dele é de lascar, para não usar verbo mais forte. Teria dito: se os livros dizem o mesmo que o Alcorão, são supérfluos e podem ser destruídos. E, se ao contrário, contradizem o Alcorão, aí é que devem ser eliminados da face da terra sem deixar rastro. As termas de Alexandria foram aquecidas por muitos anos com os livros que foram sendo queimados, até não restar nenhum. De novo.

Ignora-se se e quais livros foram salvos. Até hoje se tem esperança que um certo dia, alguém mexendo no baú das velharias da família surja com alguma cópia de algum dos livros perdidos de Diofante. Seria um prêmio, provavelmente imerecido, à raça humana.

E, aqui chegamos ao ponto focal deste texto. Supondo que surgisse tal objeto, e se levantasse a inevitável controvérsia, a pergunta que fica é: como alguém atestaria de que se trata do livro mesmo e não de um grosso embuste? Não sou arqueólogo, mas tenho certeza de que técnicas há. Talvez a idade do papel, medida pelo Carbono 14, ou o alfabeto usado, ou o linguajar, ou a tinta, ou as referências do livro, ou tudo isso junto, certamente habilitará um bam-bam-bam do assunto a decretar: é o livro perdido que retorna, ou ao contrário é um embuste, chamem a polícia.

Agora, um corte na história e avancemos dois ou três mil anos em direção ao futuro. Supondo que ainda haja habitantes na face da terra, o que não dá para garantir com muita ênfase, vá lá que se encontre um livro perdido há 5 séculos. Como descobrir se o livro é original ou é uma tapeação? A novidade agora é que o que vai se descobrir é apenas um arquivo magnético. Aqui não há papel, não há alfabeto, não há Carbono 14, não há quase nada, exceto um arquivo digital.

Surge então uma autoridade certificadora gerando o que tem sido chamado de "selo cronológico digital". Trata-se de uma certificação de que certo arquivo já existia em uma determinada forma e com conteúdo certo, em um instante claramente estabelecido no passado.

Dando um exemplo: suponha que eu seja um vidente e deseje fazer uma previsão de algo que eu asseguro que vai se realizar. Uma hipótese, esta a mais comum, é deixar (qualquer coisa) acontecer e depois ir aos jornais e TVs afirmando que 2 dias antes do acontecido acontecer, eu já tinha previsto tudinho, tintin por tintin. Ainda recentemente, no episódio do ataque terrorista a Nova Iorque, vimos de novo o mesmo filme. Nada de novo sob o sol, Carl Sagan no livro Bilhões e Bilhões, fala deliciosamente sobre este assunto.

Mas, imaginemos a hipótese improvável de eu ser um vidente não pilantra e não embusteiro, isto é, honesto. Então:

  1. Devo criar um arquivo digital (pode ser sob Word) descrevendo tudo o que desejo.

  2. Aplico ao arquivo um gerador de hash. Trata-se de um utilitário que lê o arquivo original e gera um numerão binário (tipicamente 200, 300 ou até 500 bits) que é a sua autenticação. Se eu mudar um único caractere no arquivo original e submetê-lo ao mesmo processo, o numero gerado será outro completamente diferente. É, por assim dizer, uma assinatura do arquivo.

  3. Envio o número hash gerado a uma autoridade certificadora, que data a assinatura, criptografa o pacote usando a sua chave pública e me envia de volta um selo temporal. Note que o arquivo original não vai para a autoridade, pelo que pode permanecer secreto.

  4. A qualquer momento, de posse do arquivo, do selo temporal e da confiança da sociedade na autoridade certificadora, posso provar ter escrito o arquivo antes da data confirmada pelo selo.

Note que a partir do número hash é impossível gerar o arquivo, apenas o outro sentido (do arquivo para a assinatura) é que é possível.

O selo temporal terá de ser não falsificável, e a hora usada terá de ser acima de qualquer suspeita, provavelmente um relógio atômico preciso, vinculado a uma autoridade metrológica mundial, por exemplo o NIST americano (National Institute of Standards and Technology) ou o Observatório Nacional, brasileiro.

Ainda não temos este produto sendo usado em larga escala, mas enquanto aguardamos o Diofante, podem ir se acostumando com mais essa novidade do mundo digital em que vivemos. Que mundo!