O mundo místico da válvula de descarga

Autor: Julian Carlo Fagotti

 

Não sei para quem um ateu confessa, mas tive uma experiência metafísica.

No mundo moderno, contemporâneo, somos cercados de infinitos objetos. Quando o mundo era mais simples, não no sentido de fácil, mas no de pobre, mesmo, o sentido da existência das coisas e da gente mesmo era tirado dos elementos da natureza para os panteístas, dos quatro elementos fundamentais dos alquimistas, dos espíritos ancestrais para o candomblé e derivados, dos deuses, ou do monopolista deus judaico-cristão. Mas nada comparado com o oráculo do forno de microondas, do controle remoto da televisão, das 96 funções do videocassete ou da onipresente, onipotente, e onisciente Internet. Tal como deuses, ou elementos da natureza, as coisas que nos rodeiam parecem ter vontade e razões próprias para funcionarem ou não.

Na minha insignificante existência diária transitando por estes objetos da vida moderna, deparei-me com um, talvez, desajuste astral da Válvula da Descarga. A guardiã do ciclo das águas não mais provocava enxurradas que, se em ira, provoca enchentes. Ao contrário deixou de ser cachoeira para apenas chorar, rolar lágrimas sobre a porcelana branca. Quem levava em correnteza abaixo o que há de pior no ser humano, desinteressou-se de tal maneira de cumprir seu destino, que não levava nem uma fina e leve folha de papel branco picotado. Perdeu a força como um Sansão calvo. Cansado de conviver com a preguiça divina de auxiliar este mortal, resolvi enfrentar os céus e infernos. Fui ao mercado, a floresta atual, buscar o que eu precisava para evocar a ressurreição da força das águas. Para tamanha tarefa muni-me de uma chave de fenda, uma alicate com embocadura regulável e um outro elemento místico que se não me engano é primo, ou irmão da válvula de descarga: O kit de Multireparos Censi, que traz com ele inscrições em pergaminho que me instruía passo a passo a realização da minha missão. Foi lendo as escrituras que tive a revelação de estar lidando com um ser da família, ou marca, Primor. Lá dizia que a Válvula que cuida dos bons ares da minha casa só poderia ser da família Primor, Oriente ou Oriente Superior. Podendo variar entre as bitolas 1.1/4" ou 1.1/2".

Para iniciar, como todo bom ritual, li primeiro as escrituras. Palavras e desenhos que, na minha ignorância e limitação, não entendi inteiramente, mas confiei. Tive fé de que lá estava a verdade. Abaixei a tampa da patente, sentei- me a frente daquele ciclope, e meditei. Sem saber de onde veio a idéia, de mim ou de algum piedoso duende, levantei-me e fechei o registro geral de água. Elemento também místico que fica num logo plano superior ao da Válvula de Descarga. Sem o entendimento do sentido das escrituras, mas guiado pela fé, em transe, respirei fundo e iniciei a girar, no sentido anti-horário a única peça que parecia que a alicate encaixava- se. Ao tirar a Tampa Frontal, que nos separa do microcosmos da Válvula, tive a visão. O transe aumentou, e misteriosamente tudo parecia fazer sentido. Pela primeira vez tive contato com seres inimagináveis que habitam as paredes azulejadas: A Guarnição da Tampa Frontal, a Bucha da Tampa Frontal, a Gaxeta, o Parafuso Injetor, a Mola Cônica, o Eixo Acionador, o Vedante do Rebolo e o Rebolo.

Cuidadosamente, fui substituindo borrachas e metais gastos por sei lá quanto tempo de trabalho anônimo destes pequenos seres. Algumas peças nem precisariam ser substituídas, mas eu, em agradecimento à graça consentida, em sacrifício e devoção, dei descanso a quem tanto me serviu em sigilo. Pus tudo no lugar. Iluminado, ousei abrir o Registro Geral e acionar a Válvula.

Funcionou! O Cosmos voltou a conspirar a favor. Sinto-me, depois de tal façanha, um semi-deus.