Falando em gênios

Autor: Toshikazu Hassegawa

 

Se a humanidade pudesse ser representada num único quadro, seria uma grande tela de cor cinza, com alguns pequenos pontos de um colorido intenso e duradouro - os gênios. Nós, simples mortais, comporíamos a imensidão cinza (não um cinza forte, definido, chumbo por exemplo, mas aquele quase uma cor qualquer. Seria um branco sujo? Ou um azul desbotado?). Por força de um eficiente trabalho de divulgação pessoal através da mídia, criando polêmicas ou factóides, ou sabe-se lá o que mais, alguns destes pontos cinzentos, por breve espaço de tempo, poderiam adquirir uma ligeira coloração rósea ou azulada, logo esmaecida para se tornar cinza novamente. Felizmente a caçamba da história é generosa o suficiente para comportar tantos “mitos” e “trabalhos” do tipo fast-food, daqueles que no dia seguinte já não nos lembramos mais nem da cor nem do sabor (“baba baby, baby baba”). Outros, com um pouco mais de qualidade terão a felicidade de repousar num sótão à espera do acaso ou de alguma mente curiosa. Também não há que se confiar nos julgamentos apressados ou ditados pela moda, como o exibido numa cena do filme “Amadeus”, de Milos Forman, quando o imperador José I proclama que a ópera Bodas de Fígaro, de Mozart, seria inferior ao trabalho de Salieri, “Axur” “por conter notas demais”. O tempo se encarregou de arranjar nos devidos escaninhos da história cada autor com suas obras, se bem que existam evidências de que Salieri não era tão incompetente assim.

Os poucos eleitos pela sorte, na verdade burilados por anos, ou gerações, de estudos e pesquisas (ou alguém acredita que um Leonardo da Vinci, Beethoven, Einstein ou Newton surgem como fruto do acaso?), são conhecidos através dos séculos e suas obras são reconhecidas como pilares da sabedoria e do conhecimento humano.

Alonguei-me um pouco no intróito (na verdade, divaguei, viajei na maionese) para preparar a narrativa de um encontro que o acaso (aí sim, fruto da sorte) me proporcionou anos atrás com um destes gênios. Conforme já contei aqui neste espaço, no início dos anos 80 implantei um sistema de contabilidade na Prefeitura de Londrina, fato que exigia constantes deslocamentos àquela cidade. Semana sim, semana não, lá estava eu nas segundas-feiras pela manhã no Aeroporto Afonso Pena, a caminho da “Capital do Café”, com retorno acontecendo normalmente nas sextas-feiras à noite ou, em casos fortuitos, sábados ou até mesmo domingos.

Pois bem, numa destas sextas-feiras, lá estou eu executando os procedimentos de pré-embarque quando o pessoal de terra comunica a todos que, por um defeito qualquer na aeronave, o vôo somente aconteceria na manhã de sábado. Segue-se aquele alvoroço habitual numa situação dessas - pessoas mal-humoradas tentando a transferência do bilhete para a companhia concorrente, outras carregando de volta as malas, ao mesmo tempo em que proferiam comentários nada elogiosos à empresa e seus funcionários, gente à busca de informações, enfim tudo aquilo que nossa herança cultural ibérica aceita. Juntamente com o analista de uma empresa multinacional, mais tarde conhecida como “Big Blue”, ficamos no aguardo dos acontecimentos. Serenados os ânimos, pudemos ir ao balcão para negociar nossos direitos (como não estávamos em trânsito, éramos considerados “da terra”, portanto sem direito algum). Argumentos, contra-argumentos, tréplica e enfim chegamos a um acordo - a companhia nos levaria de volta ao centro e nos hospedaria em um hotel, às suas expensas, e assim foi.

Nada digno de registro ocorreu entre check-in no hotel e a manhã seguinte, pelo menos que eu saiba. Pela manhã, ao entrar no salão onde era servido o café, eis que numa das mesas avisto um senhor de cabelos e barbas brancos, com aquele ar de avô a que toda criança deveria ter direito por lei. Imediatamente o reconheci - era o doutor Albert Sabin, que tinha ido proferir uma palestra na Universidade Estadual de Londrina. Não sou afeito, aliás, abomino aquelas pessoas que ficam emitindo gritinhos histéricos frente a “personalidades” normalmente tão descartáveis como elas próprias. Mas, pára aí. Esta não é uma pessoa qualquer. Trata-se de alguém cujos séculos que virão saberão continuar a tratar com o respeito que lhe é devido. Afinal, não é todo o dia em que alguém consegue ser um dos responsáveis pela erradicação de uma moléstia que aflige a humanidade desde sempre. Mas fiquem tranqüilos. Minha índole e o respeito à pessoa do doutor Sabin impediriam qualquer tentativa de manifestação explícita de tietagem, ainda mais num salão de café matinal. Pacientemente aguardei sua saída do salão, no lado externo, junto à porta. Pouco tempo e lá vem ele. Capricho no meu inglês, com respiração contida:

-“Doctor Sabin?” A reação foi inesperada.

-“No, no... Por favor...”, em voz alta e com aquele sotaque típico.

Um pouco decepcionado, mas entendendo que havia tentado ultrapassar uma barreira sem que fosse autorizado para tal, eu o acompanhei com os olhos, enquanto ele entrava no elevador. Refeito, fiz o mesmo, subi, apanhei as malas e desci para o check-out. Chegando ao balcão da recepção, notei que o doutor Sabin estava sentado num dos sofás da recepção, provavelmente aguardando alguém. O que ocorreu em seguida mostra a dimensão da sua pessoa. Enquanto assinava a nota, notei que ele se aproximava de mim, com um ar paterno:

- “Você queria me dizer algo?”, disse em inglês ao chegar próximo de mim (relatarei com tradução simultânea, embora de má qualidade, pois meu inglês está muito pior).

- “Minha mulher e eu somos admiradores de seu trabalho. Ela é bióloga e sempre comenta a importância de seu trabalho em sala de aula”, respondi também em inglês, àquelas alturas para lá de claudicante.

- “E gostaria de um autógrafo seu para ela”, continuei, já estendendo uma caneta esferográfica de plástico branco, com letras azuis, provavelmente propaganda de alguma firma, que estava no meu bolso. Surpreendentemente, respondeu ele, num português firme, embora com sotaque:

- “Mas é claro... Você tem um papel?”

E num pedaço de papel azul claro que apanhou sobre o balcão, escreveu em bom português: “Tudo de bom para sua esposa. Albert B. Sabin”.